Nunca vi meus cachorros morrerem, conto de Alessandro Caldeira


por Alessandro Caldeira __

"Man in the Rain at Night", 2009 - Ignace Kennis.


Tenho a impressão que os primeiros sinais de vida de uma criança é quando ganha um animal de estimação. Pelo menos foi assim comigo quando, aos dez anos, ouvi os latidos do cachorro que meus pais tinham acabado de comprar para mim.
O dálmata no quintal de casa foi o motivo pelo qual criei coragem de sair da cama. Foi companhia à primeira vista. Não era amor. Isso não me faltava.
Aliás, amor é o que não falta na nossa infância. A todo momento há sempre alguém tentando nos mostrar o quanto se preocupam com a gente. O problema é a falta de companhia.
Os adultos tem um jeito estranho de te amar fugindo de todas as perguntas que desejamos a respeito da vida. Pior ainda é quando a sua dúvida em relação a ela não é sobre como nascemos, mas como se chega à morte.
Perguntei à mamãe como é que as pessoas morrem e a única resposta que consegui foi a rejeição com um sonoro e veemente “isso é coisa que se pergunte?”. A justificava era de que não era a hora de entender essas coisas.
A verdade é que eu não deveria nem pensar na morte, principalmente por ter uma família tão alegre e que estava sempre disposta a viver a vida. E se um dia eu pensasse, era melhor esquecer.
Por isso eu vivia com o meu cachorro. Não dei um nome a ele, nem sabia como nomear as coisas, imagina um ser vivo? Além disso, sempre tive a impressão de que dar nomes a algo era coisa de adultos. Não devia me meter nisso.
Então eu só sentia a sua presença e ficava feliz quando ele corria atrás de mim, mesmo com um monte de gente em volta. Experimentava ainda mais a sensação da companhia e ficava orgulhoso de mim mesmo.
Só que me sentia mal quando ele vinha para fazer xixi ou cocô nos meus pés. Essa hora parecia que tinha sido enganado e logo perdia a vontade de me sentir acompanhado por ele.
Mamãe sempre se mostrava impaciente quando me via insistente na presença do meu cão. Dizia que eu gostava de ficar doente para fazer com que ela tivesse mais trabalho em cuidar de mim.
Talvez tenha sido por isso que no dia em que acordei e não o vi, ela me respondeu que o cachorro tinha fugido e não voltou mais. Infelizmente, para a mamãe, eu notei as marcas de sangue na rua da minha casa e comprovei que ele tinha sido atropelado.
Eu não entendi o porquê esconder algo tão óbvio assim, não bastava dizer que o meu cão estava morto ou inventasse qualquer história? Mamãe é protetora e entendo isso, mas dentro de casa a gente se protegia era contra qualquer tipo de mau.
As coisas pioraram quando passei a vigiar as horas antes do sono da mamãe porque ela sempre fazia o mesmo ritual: levantava do sofá, mandava que eu lhe pedisse a bênção e ia rezar para qualquer defunto que jamais conheci em vida.
Uma vez eu me arrisquei a perguntar a ela o porquê rezar tanto para gente morta, e ela disse que era por causa das saudades que sentia da vovó e do vovô e pedia para que Deus cuidassem deles e de nós, e que eles, também, intercedesse pela gente.
A minha cabeça não entendia essas coisas que a mamãe dizia. Como ela poderia pedir para que gente morta nos proteja sendo que ela mesma foge da morte o tempo todo?
Há um tempo atrás, por exemplo, peguei-a colocando incenso pela casa para afastar os espíritos e toda as coisas ruins que existiam entre nós.
Perguntei para ela quando foi que começou a acreditar em purificação da casa. Mamãe, como sempre, olhou-me como se estivesse arrancado algum membro do corpo dela e disse que alguém sentiu más vibrações em casa.
Olho para a mamãe como uma dessas expressões de quadrinho e acho graça, mas até que ela é coerente nisto tudo já que só tá aceitando o conselho de purificar a casa porque foi uma pessoa viva quem lhe falou.
Tenho uma leve dúvida se mamãe aceitaria da mesma forma se fosse a minha avó que aparecesse em espírito para ela e dissesse a mesma coisa.
Com certeza iria jogar todos os pertencentes do defunto no lixo e iria rezar por eles antes de mandar para a água e faria várias recomendações me acusando de alguma coisa, sempre relacionado aos meus cachorros.
Você traz esses cachorros para casa. Não sabe que eles carregam os espíritos? Nunca mais traz animal nenhum aqui para dentro, garoto!”
Talvez se mamãe soubesse o quanto eles já me ajudaram na minha própria educação, ela se sentiria melhor. Por exemplo, uma vez questionei, não para ela, mas para todos de casa como se faz sexo.
Logicamente que todos acharam um absurdo uma pergunta tão precoce como essa. A mãe ficou sem jeito e explicou, junto com todas as suas desculpas fajutas à família, que não era bom saber dessas coisas para não matá-la de vergonha porque “não foi assim que eu fui criado”.
Por isso, aprendi sobre sexo com meus cachorros quando peguei um deles acasalando e tive vontade de pesquisar sobre o assunto. Fiquei sabendo da forma como chegamos ao mundo através dos animais.
Para falar a verdade, tudo aprendi com meus cães: amizade, companhia e sexo foram meus bichos de estimação que me ensinaram, o problema é que nunca os via morrer.
Provavelmente você sinta que isso não deve ser necessário na vida de uma criança porque tudo que precisamos é realmente de amor, companhia e afeto.
Só que não entendo como uma pessoa pode se sentir companheira de alguém sem, ao menos, saber sobre a sua morte e eu me sentia traído por todo mundo quando um cão que vivia andando comigo morria e não acompanhasse o seu fim.
Quando eu ganhava outro cachorro, o que era ansiedade por brincar com meu bicho de estimação, acordar cedo passou a ser um modo de que a próxima morte não escapasse aos meus olhos.
Até que declarei que não iria mais dormir e a mamãe ficou louca com isso, dizendo que lidar com as coisas de forma tão radical não resolveria os problemas.
- Não adianta dormir, mãe, o meu cachorro vai morrer e você vai inventar mais uma desculpa esfarrapada para eu não sentir tanta falta dele.
O que ela não entendia é que eu sentia mais falta ainda quando não via meu companheiro morrer.
Infelizmente a minha estratégia não deu muito certo porque depois de uns quatro dias acordado, meu cachorro foi inventar de morrer no quinto dia que eu dormi sem querer.
Como foi que ele morreu? Ele gritou? Foi uma morte lenta? Dolorida? Silenciosa? Qual era o tipo de doença que ele tinha? Aparentava ser um cachorro tão saudável e que nunca morreria.
Me senti traído mais uma vez porque mamãe não me deixou acompanhar o “enterro” do meu cachorro.
O que ela fez foi simplesmente entrega-lo a um estranho que o levou na garupa de sua bicicleta, disseram que ele foi até um sítio isolado da cidade.
Minha sensação era de que, em matéria de viver, eu era limitado a ser apenas uma ferramenta da vida onde a única função é servir de companhia e depois perdê-la no meio do caminho. No fim, não sabia nem sobre a vida e nem sobre a morte.
A morte, porém, tornou-se banal para mim. Quando vovó morreu, por exemplo, não tive vontade de chorar, mas mamãe chorou horrores.
Ao invés de ter pena, uma raiva seca me tomou, num gesto quase assassino, eu perguntei: por que está chorando?
Entendi que mamãe sabia chorar porque tinha visto a morte da vovó e de como aconteceu todo o trajeto até o fim da vida dela.
Me tornei, então, obcecado pela morte. Dentro do quarto passei a conhecer todos os livros que falassem sobre o fim da vida: Morte em Veneza, A Peste, O Corvo.
Uma vez mamãe ficou tão preocupada que bateu na porta do quarto gritando desesperada:
- Filho, sai desse quarto. Por que a porta está trancada?
- Eu não posso! Toda vez que eu abro, alguém morre.
- Compramos um cachorro para você.
- Eu não quero cachorro! Ele vai morrer dentro de casa. Devolva-o, por favor.
- Eu vou chamar seu pai para arrombar essa porta.
Quando mamãe conseguiu entrar, ela notou os livros estavam em cima da minha cama e sugeriu que eu fizesse a mesma oração que ela faz todos os dias em seu quarto.
- Meu filho, saia de perto dessa janela, vem para perto da mamãe, eu vou te ajudar.
Não era mais a voz da minha mãe que estava ouvindo, mas só os latidos do novo cachorro no quintal.
Quando sentei na beirada da janela, a brisa estava tão fresca que, por um instante, senti que alguma coisa poderia ser para sempre na minha vida.
O último latido foi de uma maneira tão doce, limpa e viva que como num despertar, eu finalmente me expressei:
- Mãe, eu já sei como a gente morre.
FIM

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Alessandro Caldeira — Jornalista com aposentadoria precoce, se formou melhor no ramo da timidez, mas desbocado (não é, Clarice?). Para livrar de meus traumas vejo futebol com frequência, leio compulsivamente sabendo que nunca vou ser um daqueles personagens já que Belchior está constantemente nos meus ouvidos, dizendo: a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior.