por João Gomes__
Fotografia; © Mauro Pimentel |
Bem
vivo para ver a vida continuar, saiu à rua dividido na alegria das
manchetes: perdemos o ano mas vencemos o inimigo invisível. A
sensação de vitória era o novo ar que se respirava, e todos se
olhavam como sobreviventes. As únicas aglomerações eram de pessoas
vivas na frente do cemitério para visitarem e tentarem descobrir em
qual rua ficaram seus entes queridos. Nas igrejas para agradecer a
permanência, apesar de tudo, era celebrada a vida presente em seu
recomeço. Para ele não foi fácil, por ser só no mundo, solteiro e
responsável por sua vida mais que ninguém. Adoeceu, se isolou, não
fez teste e agora vai em sua bicicleta no meio dos carros que voltam
a poluir o céu. Ele mesmo não abandona mais a máscara de tecido
enquanto pedala, por não querer misturar ao sopro da vida os
resíduos do capitalismo pujante. Desacelerar, achatar, mas
finalmente resgatar o ar que faltou como sintoma em cada vítima.
Saber que sua professora de ioga seguirá guiando as meditações em
grupo, não mais em aulas virtuais, mas que delas a vida permaneceu
conectada em bons pensamentos. Não sabe se chora, se ri, se grita
para chamar mais atenção que a máscara de tecido azul. Os
escombros da guerra ficaram embaixo da terra, como que apenas
estatística varrida pra debaixo do tapete. Ao frear no sinal
vermelho, vendo atravessarem pessoas que resistiram a tudo, pensa:
aqui estou, mas olhar para trás é sempre se precaver do pior.
#quarentena #nãoaotrabalhoprecarizado #entregadoresdeaplicativo #covid
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João
Gomes
(Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de
literatura e publicadora Vida
Secreta.
Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu
livro de poesia.