A Baleia Noturna do Meu Sertão, Emerson Sarmento

por Rebeca Gadelha__




A Baleia Noturna do Meu Sertão, de Emerson Sarmentoeditora Penalux, 2019, é um livro de contrastes, de contrários que se transpassam para formar um enredo fluído e cativante, com doses de suspense e comédia na medida certa. A história, que é uma peça dividida em cinco atos, se passa no que o autor chama Cidade da Poesia, São José do Egito, no interior de Pernambuco. Nesta pequena cidade que é pouco mais que um vilarejo “existe” (o autor adaptou do folclore piauiense), a lenda de que, há muito, muito tempo, um maremoto inundou o nordeste e com isso teria levado uma baleia até o sertão do Pajeú, prendendo-a lá. Sobre o corpo da baleia teria sido construída a igreja central. Conta-se que, todos os dias, após a missa, a baleia se debate e faz tremer o templo e que, se um dia a santa do altar for roubada, a baleia se libertará e trará o mar para o sertão.

E assim, já com o boato do roubo da santa, que a narrativa começa. O Pe. Romeu, atordoado pelo rumor trazido tão cedo na manhã logo se avexa todo, preocupado não só com a crueldade e a ganância do mundo, mas com a lenda da baleia. Já no primeiro ato o autor vai dando pistas do que encontraremos na narrativa, com diálogos rápidos, algumas vezes incisivos, escritos numa gostosa linguagem coloquial típica do nordeste, a trama é tecida com habilidade.

Aliás, as personagens de A Baleia Noturna do Meu Sertão são o reflexo da constante contradição que é o ser humano: embora sejam figuras-comuns e talvez até arquétipos de pessoas que encontramos não só no sertão, mas Brasil afora, nos surpreendem por sua construção e complexidade ao narrar subtramas já tão conhecidas, como a do prefeito corrupto, da moça que vive entre sagrado e profano, da ganância desmedida do ser humano, da banalidade do mal de quem apenas cumpre ordens e, claro, do louco que é, na verdade, uma voz de lucidez, mas que é sempre desacreditado por sua suposta loucura.

A obra, seja na escolha do sertão do Pajeú como lócus da narrativa ou seja pelos tipos humanos que transpassam a narrativa, é um reflexo interessantíssimo também deste espaço que se desenvolveu historicamente, como afirma o geógrafo e cientista social, Antonio Carlos Robert de Moraes, como o outro geográfico, um espaço vastíssimo que “não se classifica, do ponto de vista clássico da geografia, como um tipo empírico de lugar, isto é, ele não se define por características intrínsecas de sua composição ou do arranjo de seus elementos numa paisagem típica” (MORAES, 2003). Mas que é, segundo o autor, um símbolo imposto - em determinados contextos históricos - a certas condições locacionais, é uma “ideologia geográfica” como aponta Moraes. Isto porque o sertão se desenvolveu em uma relação de oposição e complementaridade à costa, que aqui não se compreende simplesmente como a faixa de terra do litoral, mas como o espaço, conhecido e dominado pelo colonizador. O sertão é, assim, o espaço vasto e desconhecido, onde a natureza é hostil e as gentes, selvagens. Mais tarde, com a expansão do cultivo da cana, o sertão é também complementaridade: é lá que cresce o gado que move o engenho e alimenta a casa grande. Sua natureza hostil, segundo as visões da época, teria sido responsável pelo o que há de melhor e pior em sua gente: bravura, indolência, força, selvageria, sabedoria popular, misticismo. As personagens e a própria trama de Sarmento encarnam belamente estas contradições e complementaridade, mostrando, numa narrativa concisa, divertida e provocante a complexidade do ser humano e do espaço.


Referências:

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo: Editora Cortez, 2011.
Antonio Carlos Robert Moraes, « O Sertão », Terra Brasilis [Online], 4 - 5 | 2003, posto online no dia 05 novembro 2012, consultado o 02 outubro 2018. URL: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/34 1; DOI : 10.4000/terrabrasilis.341



Emerson Sarmento é natural de Recife, poeta e cantautor. Ganhou, com a música, o Festival de Música Carnavalesca do Recife, época em que marcou presença no FIG e em outros festivais locais. Com a poesia, escreveu dois livros: Perfume do Sangue (Moinhos de vento, 2012) e Cromossonhos (Penalux, 2016). Concorreu ao Festival Recitata e ao Prêmio Sesc de Literatura. Também foi publicado pelas revistas: Conexão Literatura, Mallarmargens e Germina. Em 2017 participou do Projeto Pasárgada Doc. pela SECULT – PE e da Bienal Internacional do livro em PE. Seu livro mais recente é A Baleia Noturna do Meu Sertão, publicado pela Editora Penalux em 2019.



Rebeca Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual em Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros (CJA Editora), Coordenação, Designer e ilustrações em Laudelinas (Editora Nada Estúdio Criativo), Organização e Conceito Visual na coletânea A Banalidade do Mal (Selo Editorial Mirada), participa da publicação Paginário (Editora Aliás). Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jade.