A felicidade que sentimos ao ver a obra em nossas mãos é inexplicável

por Taciana Oliveira__




Conversei com o artista pernambucano Emerson Sarmento e na pauta dessa entrevista suas paixões pela música, teatro e literatura.

1 - Da sua experiência com a música até a literatura a partir de que momento você se encontrou como artista ?

R: Nasci em uma família de músicos, meu pai é professor de música, produtor e maestro, meus tios são compositores de Frevo e de certa forma sempre estive inserido nesse universo desde muito cedo. Eu tive o privilégio de estar com vários artistas daqui da minha terra e também de outros lugares do país e isso me trouxe uma vontade muito grande de fazer parte daquilo como um artista. Então, aos 16 anos já gostava e conhecia muito os clássicos da música popular brasileira. Adorava ouvir Cartola, Noel Rosa, Ismael Silva, Adoniran Barbosa e também artistas posteriores a esses citados, como: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano, Gil, Tom e Vinicius, Gal etc. A lista é grande, mas a verdade é que minha essência era mesmo o rock in roll, sobretudo os oitentistas nacionais e foram essas as minhas primeiras influências no mundo da música. Com essa idade, 16, formei minha primeira banda que tinha uma influência muita grande do Barão Vermelho e principalmente do Cazuza. Foi um momento muito importante para mim porque juntamente com esses amigos eu pude construir meu primeiro laboratório e produzir minhas primeiras composições. Foi uma época de experimentação, uma busca pela própria linguagem. Durante o período que passei na banda, eu fui estudar canto erudito no Conservatório Pernambucano de Música, onde meu pai é professor até hoje. Foi uma outra experiência importante, pois, passei a conhecer melhor um universo completamente diferente do que já estava habituado e logo fui querendo experimentar outras coisas e não quis mais me limitar na banda e, portanto, a minha banda chegou ao fim depois de quase 2 anos de vida. Com o conservatório, fiz apresentações em dois musicais. Infelizmente, não me recordo o nome desses musicais, mas um deles foi no Teatro Santa Isabel - para quem não conhece, é o teatro mais importante, historicamente falando, de Recife. Foi uma vivência única, tanto pelo lugar, como pelo espetáculo que foi só com músicas indígenas. Após algum tempo, no Conservatório, precisei sair, pois o horário das aulas chocavam com os horários da faculdade, pois nesse ano, 2010, eu estava começando a cursar Letras na UNICAP e foi nessa época que senti uma necessidade de compor músicas inspiradas nos artistas da música popular brasileira e também nas músicas pernambucanas, como: caboclinho, maracatu e frevo. Nesse mesmo ano compus um caboclinho com meu pai chamado O canto do pássaro caboclo para o Festival de música carnavalesca do Recife e ficamos entre as seis melhores do festival. Tivemos a honra de ver a música ser executada pela orquestra do maestro Nenéu Liberalquino e interpretada pelo grande Geraldo Maia, eu só tinha 21 anos e fiquei muito encantado com tudo aquilo. Já neste ano, em paralelo a isso, lancei meu projeto solo com minhas próprias composições que vão do samba, do bolero até o frevo, maracatu, xote e mangue beat. Em 2011, participei novamente do Festival com o maracatu Canto de Oxalá e tive a grande felicidade de ganhar em primeiro lugar; a música foi interpretada novamente por Geraldo Maia juntamente com a orquestra do maestro Spok no Parque Dona Lindu. E com o projeto solo fiz muitas apresentações e cheguei até ao Festival de Inverno de Garanhuns. Quando alguns jornalistas passaram a falar do meu trabalho com a música e as pessoas passaram a ir me assistir, passei a me ver como um artista. Dentro desse contexto musical, também tinha construído o hábito da leitura, desde pequeno meus pais compravam gibis e livros infantis. Na adolescência inteira, meus pais levavam eu e meu irmão para comprarmos livros na Bienal Internacional do Livro, todo ano íamos. E já nesse período, antes de entrar na banda, ganhei alguns concursos literários promovidos por comunidades literárias que atuavam no Orkut. Como eu era muito novo, 15 anos, os escritores mais velhos passaram a desconfiar de que eu não seria mesmo o autor dos textos e por conta disso, eu criei um pseudônimo chamado "O palhaço". Aos 17, voltei a usar meu próprio nome e recebi um convite para escrever mensalmente no blog Vale das Sombras. Eu não lembro quanto tempo fiquei por lá, mas acredito que foi cerca de um ano. Em 2012, recebi um convite da extinta editora Moinhos de Vento para publicar meu primeiro livro, intitulado Perfume do Sangue. É um livro de sonetos que escrevi da minha adolescência até 2011. A minha conexão com os livros e com a literatura também foi de berço e sinto-me um sortudo e grato aos meus pais por ter tido essa formação desde criança.

2 - Como funciona o teu processo criativo nos diversos gêneros artísticos?

R: Com a música, eu tenho parceiros, pois sou letrista, dificilmente compus uma melodia e também a letra. O primeiro parceiro foi meu irmão, Elton, que é músico. Com ele fiz as minhas primeiras músicas para a banda a qual ele também fazia parte, e, então, eu fazia as letras e entregava para ele colocar as melodias. Basicamente o meu processo de composição é esse. Com a literatura, eu escrevo sobre o que vejo e sobre o que sinto, acho que a literatura é a conclusão de tudo isso que enxergo nos sentimentos e no que o mundo apresenta para mim. Certa feita, eu vi o Marcelino Freire dizendo que escrevia para se vingar. É isso mesmo, se vingar de um amor que não deu certo, de um governo escroto etc. Eu me identifiquei bastante com essa afirmação porque tenho sim um pouco disso quando escrevo, seja num poema, numa crônica ou na dramaturgia.

3 - Você tem dois livros de poemas publicados: Perfume do Sangue e Cromossonhos. Como você se descobre na dramaturgia e concebe a A Baleia Noturna do Meu Sertão?

R: A dramaturgia era um grande desafio para mim. Quando eu era pequeno assisti várias peças de teatro e também pude ver os bastidores de uma dessas peças. Era a peça Peter Pan e meu pai estava fazendo a sonoplastia desse espetáculo, então, eu tive acesso aos atores e toda a galera que fez aquela peça acontecer. O ano era 1994, se não me engano, mas lembro com perfeição da magia que o teatro me causou nessa época, eu tinha apenas cinco anos de idade e esse momento me marcou bastante, até hoje lembro com perfeição dessa experiência. Na mesma década, lembro, não com tanta perfeição, de uma farra com muita gente da arte lá, bebendo e falando sobre cultura e eu lembro de um senhor que estava todo de branco e quando falava geralmente as pessoas davam muitas risadas, inclusive eu. Meu pai me explicou que aquele senhor escrevia peças de teatro e que ele era muito importante para nossa cultura, esse senhor era Ariano Suassuna. Quando eu estava na adolescência, já conhecia bem o teatro de Ariano, sobretudo porque uma música que meu pai fez para mim, Choro miúdo, quando eu era criança se tornou a música/tema de Chicó e Rosinha no O Auto da compadecida. Eu assistia tanto a série que sabia quase todas as falas, pois quando passou a série exibida pela Globo, meu pai gravou todos os episódios em um VHS, logo, assistia sem parar. Anos depois, já no ensino médio, minha escola tinha uma boa biblioteca, tinha de um tudo. Eu vivia lá e a bibliotecária me deixava "gazear" aula para ler. Certo dia eu a vi assistindo filme pornô no computador da biblioteca. Então ela me propôs deixar entrar sempre que quisesse em troca de nunca comentar este episódio com ninguém da escola. Eu li muito nesse período e foi quando tive contato com os textos de Ariano Suassuna. Li quase tudo dele nessa época. Li também Nelson Rodrigues, Hermilo Borba Filho etc. Nessa mesma escola, criei alguns roteiros para peças, escrevi o momento do suicídio de Getúlio Vargas, fiz uma adaptação de algumas histórias da mitologia grega, colocando os personagens com um linguajar nordestino e por último trouxe a peça do século XVI Quem tem farelos? do Gil Vicente fazendo uma adaptação utilizando os problemas sociais do meu tempo. Sempre fiquei extasiado com o texto do teatro porque tudo era conduzido apenas por diálogos e funcionava perfeitamente bem para imaginarmos a história e os personagens assim como fazemos ao ler um romance. Escrever teatro era um sonho antigo que só veio se concretizar agora com A baleia noturna do meu sertão, pois tratava-se de gênero que, para mim, estava muito distante enquanto autor. Em 2019 deixei o medo de lado e escrevi minha primeira peça de verdade.

4 - A Baleia Noturna do Meu Sertão vem com uma narrativa baseada em uma lenda do povo piauiense. Como foi transpor esse universo para o sertão pernambucano?

R: Quando minha amiga, Valéria Fontenele, piauiense, me falou sobre a lenda da baleia, eu fiquei muito impressionado com o fato de imaginar que no sertão há uma baleia presa em um encanto embaixo da igreja matriz. Sou um ser urbano, mas dentro do imaginário sertanejo há muita coisa extraordinária para utilizarmos dentro da literatura e da arte em geral. Transpor essa ideia para Pernambuco, teve um propósito e foi tranquilo, já que o sertão daqui também tem várias histórias tão incríveis como a da baleia. Acredito que no âmago do sertão o ato de imaginar transborda qualquer limite da razão, da ciência e da realidade. Quem imaginaria uma baleia vivendo em um sertão? A ideia de trazer o enredo para São José do Egito, foi justamente porque eu queria trazer um elemento do teatro clássico para a minha história, o elemento é, pois, o Coro que podemos encontrar, por exemplo, nas obras do dramaturgo grego Sófocles. Porém, o coro no meu teatro teria uma proposta diferente. A ideia do coro no teatro grego era passar informações relevantes ao público, informações que nenhum dos personagens poderia dizer, ou seja, seus medos, pensamentos etc. Já na A baleia noturna do meu sertão, o coro era formado por um grupo de velhos e velhas fofoqueiros que dão informações irrelevantes para o público, mostrando, por exemplo, quem é corno e quem era o responsável pela traição. E também, o coro tem o objetivo de confundir o público em relação ao desfecho da história, ao contrário do coro grego. E o que isso tem a ver com São José do Egito? Explico! Para quem não conhece, São José do Egito é conhecida como a cidade da poesia e o coro de fofoqueiros quando se manifesta, só fala em versos - redondilhas maior já que os versos são em sete sílabas. Eis o motivo principal de trazer aqui para solos pernambucanos essa história piauiense tão imaginativa.



5 - Percebo que na construção narrativa da obra A Baleia Noturna do Meu Sertão você flerta com o universo dramatúrgico de Ariano Suassuana . Quem são tuas referências no Teatro Brasileiro?

R: Sim, há um flerte com Ariano. Eu diria que é um diálogo, pois eu percebi que as mocinhas do Ariano Suassuna eram muito idealizadas, as católicas que agem de acordo com a lei divina e mundana. As mocinhas que eu criei são mais voltadas à essência humana, ou seja, elas têm falhas de caráter como qualquer outro personagem. O Ariano trouxe informações históricas no O Auto da Compadecida, como, por exemplo, a atuação dos cangaceiros nas cidades dos interiores, já eu quis mostrar mais a questão atual, a politicagem que há em nossos sertões. Eu estava sempre buscando traçar um paralelo entre o sertão de Ariano e o sertão mais atual e como eu o enxergo. E para concluir, as minhas referências nacionais, são: Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, Hermilo Borba Filho, Aristóteles Soares, Osman Lins, Artur Azevedo, Gonçalves de Magalhães.

6 - Em tempos de pandemia, apesar da extrema dificuldade para o mercado independente, há uma produção crescente. A Folha de São Paulo publicou recentemente que as vendas de livros tiveram uma aumento de 31%, apontando para recuperação do setor. Você tem algum projeto em produção ou no prelo?

Tenho sim. Estou trabalhando em um novo livro no gênero romance. Tenho alguns romances parados e esse é um deles e que agora voltei a trabalhar nele. O título por enquanto é Prelúdios da perversão privada, e trata-se de um serial killer que atua no Recife atual. Mesmo com o avançado uso da tecnologia e das investigações, o livro mostrará como um psicopata utilizará das mesmas ferramentas ( tecnologia e investigação) para continuar matando sem ser notado ou preso. Eu pesquisei bastante sobre o fenômeno serial killer e conheci muita coisa bizarra e triste. Uma das referências para a desse personagem do meu novo livro é o serial Ted Bundy que foi morto na cadeira elétrica pelo assassinato de diversas mulheres em vários estados americanos; conhecer mais esse cara e sua violência desumana muitas vezes me deixava mal, na verdade, escrever esse livro me causa esse sentimento, essa angústia, mas a literatura tem isso, né? O sofrimento só acaba quando o livro fica pronto mesmo que a história seja leve. O ato de escrever em si é algo que desgasta muito, mas a felicidade que sentimos ao ver a obra em nossas mãos é inexplicável.





Emerson Sarmento é natural de Recife, poeta e cantautor. Ganhou, com a música, o Festival de Música Carnavalesca do Recife, época em que marcou presença no FIG e em outros festivais locais. Com a poesia, escreveu dois livros: Perfume do Sangue (Moinhos de vento, 2012) e Cromossonhos (Penalux, 2016). Concorreu ao Festival Recitata e ao Prêmio Sesc de Literatura. Também foi publicado pelas revistas: Conexão Literatura, Mallarmargens e Germina. Em 2017 participou do Projeto Pasárgada Doc. pela SECULT – PE e da Bienal Internacional do livro em PE. Seu livro mais recente é A Baleia Noturna do Meu Sertão, publicado pela Editora Penalux em 2019. 




Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.