Fábrica de mães, um conto de Ticiana Werneck

 por Ticiana Werneck__





6:35h. A Mãe da Ju estava me esperando na porta de casa para irmos as três caminhando para a escola. Como todo dia. Ela passou a mão na minha cabeça: “Bom dia, Lili”. Como todo dia. A mão dela tem cheiro de alfazema. Eu sei porque um dia eu perguntei pra ela. “Que cheiro é esse que você tem?”. E ela me disse.

Alfazema.

Eu queria ter cheiro de alfazema.

No fim da aula, lá estava a Mãe da Ju no portão da escola. Viemos andando apressadas pra casa, “assadeira ficou no forno”, ela diz quase sempre. Na entrada da vila, a perua do Renato, que estuda em outra escola, chegou junto com a gente. Ele me deu tchau da janela.

Sopa de batata para o almoço, de novo. A Vó, parada no fogão, acenou com a cabeça. Comi rápido e subi pro meu quarto, queria continuar meu desenho do zoológico com os bichos que inventei: tartaruga-rabo-de-flor, gato-rei, tatu-pipa e peixe-pêra. O Pai falou que eu desenho direitinho. A Ju falou que pra ser arquiteta tem que saber desenhar muito bem. Eu desenho bem.

**

No domingo, eu estava vendo TV quando ouvi a buzina do Pai. A vó deixou eu sair. Coloquei meu capacete e fomos, eu e o Pai, ventando pela rua. Eu pedi um sorvete de morango e ele de nozes (eca). Eu mostrei meu desenho do zoológico pra ele. Ele falou “Que lindo, Lili. Mas eu não entendi o que é isso aqui, um gato?” E eu tive que explicar cada bicho. Acho que ele também nunca foi no zoológico.

Quando voltei pra casa, a vó estava costurando “tlec tlec tlec”. Nem me viu entrar. Eu pensei em dar um susto nela, mas lembrei que ela tem o “coração fraco”. A Vó vive repetindo isso. Ela faz uma cara. Parece que sente pena dela mesma. Eu também tenho o coração fraco, ué. Quando eu penso na Mãe, eu sinto meu coração bem fraco.

Ele

Bate

Bem

Baixinho.



**

A Vó estava conversando com a Dona Lurdes no portão, que veio contar que seu Filho Médico vai ganhar um prêmio. Ela também tem o Filho Engenheiro e o Filho Advogado Sênior. Ela vive contando sobre os filhos, que um mora fora, que o outro casou com uma moça de boa família (se ela fosse de uma família má não podia casar?), e que um já tem dois Filhos Futuros-Médicos. A Dona Lurdes disse que pra semana eu já posso ir no quintal dela catar acerola de novo.

A Vó fica brava depois dessas conversas. “Ah mulher sonsa. Não cansa desse ‘lengo lengo’”, ela disse. Eu falei, “é lenga, lenga que fala, Vó”, eu ri. “É, isso”, ela fez assim com a mão. “O que é sonsa?”, eu perguntei. “Deixa pra lá”, ela respondeu.

Quando eu crescer, vou ser Arquiteta Sênior. E vou ganhar um prêmio de melhor Arquiteta Sênior.

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O Renato veio me chamar pra jogar bola no fim da vila, ali onde é o terreno que o Vô comprou para construir a casa da Mãe e hoje é só mato. A Ju veio também, mas ela só atrapalhou a brincadeira. Corrigia o Renato o tempo todo e ria das palavras que ele falava. Uma hora ele botou a bola embaixo do braço e voltou para casa, marchando forte.

Passei no quintal da Dona Lurdes Sonsa e enchi o balde de acerola. Agora a Vó pode fazer suco todo dia pro lanche.

**

Ouvi a buzina do Pai e corri pra fora com meu capacete. Fomos na lanchonete comer misto-quente, meu sanduíche preferido. Jogamos jogo da velha com o guardanapo. Ele não sabe porque o jogo tem esse nome e achei injusto com as velhinhas. Como se elas só soubessem fazer bola e cruz. A Vó sabe fazer tanta coisa. Ela trabalhou numa fábrica de bonecas quando era jovem, foi enfermeira-socorrista na época da guerra, ganhou um concurso de Miss no baile do clube. Hoje é aposentada e costura para a confecção da Dona Vivian. Ela faz um suco de acerola muito bom também.

O Pai disse que a gente podia fazer diferente, então eu fiz coração e ele estrela no lugar da cruz e da bolinha.

Quando cheguei em casa, a Vó tava “tlec tlec tlec”. Perguntei por que ela parou de fabricar bonecas. Ela fez “hein?”. Eu gosto quando a Vó faz “hein”, porque ela sempre levanta o nariz e ele vem levantando um monte de coisa junto como os olhos, os óculos, as sobrancelhas e a testa. A cara dela fica engraçada. Ela desligou a máquina e me contou que quando ela casou, o Vô falou que ela não ia mais trabalhar fora então ela ficou em casa. Que antigamente era assim. “O homem mandava e a mulher obedecia”, ela disse. A Vó falou um tempão sobre a juventude dela na fábrica, que na época da guerra faltava tudo no mercado e só tinha polenta pra comer; quando tomava o trem, paquerava os moços...” Quando fui dormir, tentei imaginar a Vó paquerando. Acho que ela estava mentindo nessa parte.

**

Na volta da escola, passei pela casa da Dona Lurdes Sonsa e o carteiro estava entregando uma caixa com a palavra “Alemanha”. Ela tava toda cheia de si com a caixa: “Ah, é do meu Filho Engenheiro”, me disse.

Quando cheguei na frente de casa, já sabia o que tinha de almoço. Sopa. Só não adivinhei do quê. Depois vi na panela, batata com chuchu – não tem gosto de nada, e a gente nem tá em guerra.

A Dona Vivian estava na sala achando ruim com a Vó. A Vó tava se explicando que a costura não estava boa porque ela não achou o zíper da mesma cor. Dona Vivian falou que assim não ia mais mandar costura. Eu fiquei da cozinha olhando. A Vó fez que ia chorar. Eu perdi a fome só de pensar na Vó chorando. Subi pro quarto sem comer.


**

O Renato tinha prometido que no sábado de manhã ia me ensinar a desenhar um urso e um tigre. Ele desenha muito melhor do que eu. Ele vai poder ser arquiteto com certeza, se quiser. Ele não apareceu. Quando eu ia tocar a campanhia, ouvi a mãe dele gritando que “já estava na hora de parar de falar que nem neném. É ‘preciso’ que se fala, PRE-PRE. Encontro-TRO-TRO”, gritava. Fiquei parada com o dedo na campainha sem tocar, com medo dela brigar comigo também.

Passei no quintal da Dona Lurdes Sonsa e peguei mais acerola. Cheguei perto da janela da sala dela, e olhei lá dentro. Era tudo tão limpinho. A mesa de vidro sem nenhuma marca de dedo, o chão de azulejo branco brilhante, sem nenhum retalho, linha ou botão. Nem reparei que ela estava me olhando sentada no seu sofá estampado. Ela parecia um vasinho de flor naquela sala. “Lili, alguma notícia da sua mãe? Quando ela volta?”, me perguntou. “Eu não sei não”, respondi e voltei para casa com o balde pela metade.

Mãe, quando você

vai

parar

de

ficar

triste

e voltar pra casa?

A Vó diz que a Mãe tá quase boa, mas o tratamento que faz uma pessoa ficar feliz demora mesmo. Na última vez que falamos no telefone, parecia que a Mãe estava com cinco chicletes na boca. Eu não entendi muita coisa e só respondi “Aham”.


**

A Vó me contou que quando trabalhou na fábrica, cada um lá tinha um tipo de serviço. Durante um tempo, ela ficou na parte dos braços. Eles saíam quentes da máquina e era preciso esperar esfriar antes de encaixar no tronco. “Eram braços perfeitinhos, como de gente”, disse. Esses braços tinham mãos com dedos abertos e flexionados, como se tivessem congelado no meio do movimento.

Depois, ela foi para a seção dos olhos. Ela tinha que forçar as bolinhas na órbita e então verificar se estavam do lado certo (vai que a parte branca gira pra frente? a boneca vira um monstro). Ela contou que não podia comer nada durante o expediente, apenas na hora do almoço. Quando ela sentia fome, dava umas mordidas no sanduíche de mortadela escondido no bolso do avental. Uma vez, ela viu o supervisor vindo e jogou o sanduíche no chão.

Achei muito chato isso dela ter que jogar o sanduíche no chão. “Ele era muito rigoroso”, ela justificou. Eu queria saber mais sobre esse homem que fez a Vó passar fome enquanto fazia bonecas para meninas sem fome brincarem. Ela disse que já estava muito tarde e eu precisava dormir.

**

A Ju me contou que ouviu a Mãe Dela conversando com o Pai Dela sobre a Mãe. Ela contou que a Mãe foi expulsa da minha casa pelo Vô quando engravidou de mim. O Vô gritou pra toda vila ouvir: “Não tenho filha puta. Você não é mais minha filha”. Disse que a Mãe nunca mais apareceu por aqui, até o dia que o seu avô... “Que o Vô o quê, Ju?”, perguntei. “Tô cansada agora, amanhã eu conto o resto”, ela disse.

Conta agora, não custa nada”.

Não vou contar, você não manda em mim. Vou pra casa”.

Puta. Era uma coisa ruim, com certeza. Já tinha ouvido homens gritarem isso na rua. Pu-ta, essa palavra ficou rondando minha cabeça.

Vó, minha mãe era puta?”

A Vó fez uma cara igual quando viu uma barata em cima da travessa de lasanha. “Quem te falou isso, Lili? Nunca mais repita essa palavra nessa casa, está ouvindo?”. “Vó, por que a Mãe não fica feliz e vem logo pra casa?”, perguntei. “Minha filha, nas coisas da cabeça da gente, não se ordena. É aguardar”. Ela disse isso. Como se bastasse.

Mas

Não

Basta.

Quero saber porquê não se fabrica um remédio que faz a pessoa voltar a ser Mãe. Por que não existe uma fábrica que em vez de bonecas igual gente, não faz gente logo de uma vez? Gente para substituir as pessoas que estão quebradas? A Dona Lurdes Sonsa não tem um pedaço do pé – ela falou que é por causa da diabetes. Podia fabricar uma Dona Lurdes que não fosse sonsa e que tivesse os dois pés bonitinhos, com dedos flexionados, como se tivessem congelado no meio do movimento. Podia fabricar uma amiga Ju que não fizesse troça dos outros. Uma Mãe que levasse na escola e cheirasse à alfazema. Fabrica tanta coisa idiota, e coisa importante assim, nada.

***

Ouvi uma buzina, mas não era a buzina do Pai. Era uma buzina de carro. Levantei o cantinho da cortina e vi o Pai no volante. Tinha uma mulher do lado. “Lili, essa é a Carmem, entra aqui atrás”. A Carmem tinha uma cara de bolacha recheada, dessas sorridentes. Eu sentei atrás do Pai e dali olhei para a barriga da Carmem, cheia que nem balão. Ela alisava o balão como se fosse o pelo de um gato. Coisa besta, eu não fico alisando a minha barriga assim. Ela deve gostar muito dessa barriga enorme dela.

O Pai levou a gente no zoológico. Eu não acreditei quando vi o letreiro. Passamos pelo macaco, tucano, jacaré, girafa, elefante, e quando chegou na zebra, eu pensei “não é possível”. Um bicho, assim preto-e-branco listrado perfeitinho, só podia ser mentira. Parecia um bicho do meu zoológico.

O Pai perguntou se eu gostaria de morar com ele. Achei uma pergunta sem pé-nem-cabeça. Eu já tenho casa. “Eu moro com a Vó”, eu disse. Ele ficou querendo me convencer “pensa depois com calma”. Ele disse que agora ele e a Carmem Alisa Barriga tinham um apartamento só deles e que lá tinha um quarto para mim. Um quarto com um monte de bichos no papel de parede. “Hum”, eu respondi.

Não pensei com calma, e nem sem calma, sobre isso. O meu quarto, na Vó, não tem bicho na parede, mas é bem legal.

**

Perguntei pra Ju se a Mãe Dela falou mais alguma coisa da Mãe. Ela disse que ouviu há muito tempo, alguém dizer que a Mãe está internada num hospital muito longe que “trata gente maluca”. E que a Vó gasta todo o dinheiro que tem e que não tem para pagar a mensalidade do hospital. Eu disse que a Mãe não era maluca, era só triste. E que era impossível a Vó pagar alguma coisa com dinheiro que não tinha, ela só paga com o que tem mesmo. Perguntei se ela sabia de mais alguma coisa. Ela disse que não, mas eu acho que a Ju mentiu. O Renato, que estava com a gente desenhando com giz no asfalto, olhou pra mim com a mesma cara que a Vó faz quando diz que tem o coração fraco.

***

Uns homens da prefeitura vieram cortar o mato do terreno que o Vô comprou pra Mãe, que tá cheio de saruê e ratazana, os vizinhos reclamaram. Essa história não faz sentido. O Vô devia amar muito a Mãe pra comprar um terreno pra ela. Não é presente assim fácil de comprar. Ele deve ter feito planos para ela e aquele terreno. Agora é mato alto.

O Renato e eu ficamos sentados olhando os homens trabalharem. O Renato estuda numa escola particular com nome grã-fino, como diz a Vó. Ele não sabe se vai ser arquiteto quando crescer. Ele faz tanta coisa bem que pode ser o que quiser, na verdade. Ele sempre encontra todos os sete erros dos passatempos, imita as pessoas do jeito mais engraçado do mundo, e sabe fazer pipoca – a mãe dele deixa ele mexer na panela quente. Depois que ele começou a ir no doutor, ele quase não troca mais o erre. Não ouvi mais a Mãe Dele gritar aqueles gritos que saíam pela janela e varriam a rua. Não que eu reparasse na ausência de erres na vida do Renato. Eu sempre entendi tudo que ele falava. Acho que as pessoas têm é muita má vontade com quem é um pouco diferente. “Toma aqui um remedinho para ficar igual a todo mundo. Enquanto falar, andar e pensar diferente não pode parar de tomar”.

Será que foi por isso que o Vô expulsou a Mãe de casa? Porque ela não tomou o remédio e insistiu em ficar diferente da filha que ele queria ter quando comprou o terreno? Será que o Pai era de família má e não servia para ser Pai? A Vó não responde mais nenhuma das minhas perguntas. Tá sempre “tlec tlec tlec” atrás da máquina porque a Dona Vivian pediu uma encomenda de um milhão de peças.

***

Quando veio pegar a gente na escola, a Mãe da Ju estava com uma cara de quem tinha passado por um vendaval. Mas, estranhamente, ela estava sem pressa, sem nada no fogo. Antes de virarmos a esquina da vila, ela me contou que a Vó teve um problema e vai passar uns dias no hospital, mas que

vai

dar

tudo

certo.

Enquanto isso, eu vou ficar na casa dela. Ela parou na porta esperando eu entrar e fazer uma mochila com as roupas que ia precisar, escova de dente, lápis de cor. Quando desci as escadas, vi a máquina de costura em cima da mesa. Seu silêncio era tão grande. Puxei o ar com toda força para encher o peito e veio aquele cheiro de sopa que estava grudado no carpete. A casa sem a Vó é outra casa.

Na casa da Ju, tinha frango, arroz, feijão, batata e espinafre de almoço. Comi dois pratos. Antes de dormir a Mãe Dela veio nos dar um beijo de boa noite.

Beijo

De

Boa

Noite.

Fiquei pensando se haveria um beijo de bom dia também. E outro de boa tarde. Seria bom tantos beijos acompanhando o ir do dia. Quando ganhei meu beijo de alfazema, perguntei pra Mãe da Ju se ela era mesmo amiga da Mãe quando mais novas. Ela disse que sim. “A gente gostava de brincar de taco na rua, de esconder, não tinha casa nenhuma aqui atrás então tinha muito espaço. A sua mãe era uma dançarina e tanto, a gente vivia ensaiando passos de dança”. Eu comecei a imaginar a Mãe menina quando a Ju interrompeu, “Mãe, conta a história da princesa e o sapo?”. Eu quis jogar o abajur na cabeça da Ju. Ainda bem que a Mãe Dela disse não. Que hoje contaria a história da Mãe. Eu fui dormir na cama do quarto da Ju e tive um milhão de sonhos com a Mãe feliz e correndo e brincando e dançando.

Eu acordei querendo desenhar a Mãe. A Ju não me emprestou o amarelo.

Fiz

sem

o amarelo

mesmo.

Ao lado do tigre-rosa e do elefante-cata-vento, fiz a Mãe com

sorriso,

taco na mão

e roupa de dançarina.


* Fotografia: Scott Higdon




Ticiana Werneck nasceu no Rio de Janeiro em 1976, hoje mora em São Paulo. Aos onze anos, brincando com uma máquina de escrever, criou um jornalzinho de histórias inventadas. Nunca mais largou os teclados. Jornalista, escreve para revistas e portais de negócios, e continua cedendo ao impulso de fatiar a vida em histórias. Escreveu o livro de contos Trilhas para Andar Descalça (Ed. Moinhos), e a novela Ana não sabe nadar (ebook na Amazon).