Noélia, uma crônica de Thiago Noronha

 por Thiago Noronha__




Semana passada eu tava chegando de um dia cheio no trabalho e após subir três dos quatro andares, deparo-me com uma bela garota sentada no último lance de escadas.

Ainda ofegante da subida, e no susto do encontro inesperado, exclamei: opa, boa noite!

A garota se engasgou com um Big Mac. Ela foi logo pedindo desculpas por estar ali, mas seguiu sentada e começou a se explicar:

... é que eu cheguei agora, morta de bêbada, e tá todo mundo na sala - falou apontando com a cabeça a porta do 401, apartamento vizinho do meu atual - aí eu pedi esse sanduíche pra comer e tentar ficar menos bêbada e passar despercebida.

- ah, de boa, sem problema.

Mesmo na penumbra eu fiquei abobalhado pela beleza da mulher. Ela tinha a minha idade, provável. Muitos traços paraenses. Cor de pele miscigenado.

- Meu nome é Thiago, aliás. Mudei semana passada pra cá - falei apontando com a cabeça a porta do 402.

- Que legal, meu nome é Noélia.

- Que nome diferente, parece nome de gente mais velha - eu e o meu tato social.

- Pior que é, é o nome da minha avó materna, mas eu gosto.

- Eu também curto.

Impossibilitado de continuar subindo os degraus, que eram, então, usados como banco e mesa para a minha recém-conhecida nova vizinha, e diante do fato de ela, talvez por conta da bebedeira, não se atentar de que estava barrando o caminho, eu resolvi sentar também, num degrau mais abaixo de onde ela terminava seu lanche.

- Eu sou de Fortaleza. Você é daqui mesmo de Belém?

- Sou, mas não moro aqui, aqui é a casa da minha mãe, moro na Itália. Mas tô aqui há uns meses.

- Veio visitar.

- Foi, mas aí a pandemia ficou muito grave lá e eu tive que ficar mais tempo, aí agora tá grave aqui e eu tô sem passagem pra voltar. Mas acho que vou em breve.

- Eita, e o que você faz por lá?

- Sou modelo. Mas modelo de pé.

- Ham?

- É sério, sou modelo de pé da Ipanema na Europa. Sabe a sandália tipo Havaianas?

- Sei sim.

- Para de olhar pro meu pé, tô vindo da rua, tá todo sujo.

- Perdão, foi inevitável.

- Poisé, eu sei, sempre acontece.

Ela continuou lá comendo e me estendeu as batatinhas.

- Não, valeu.

- Aceita, já tô quase cheia.

- Ah, então obrigado.

- Estive lá na sua terra uns meses atrás.

- Sério? Turistando?

- Não exatamente. Fui levar mimha avó, a Noélia, pra visitar a terra natal dela, Quixeramobim, conhece?

- Só de nome, mas nunca visitei. Então você tem sangue de Cearense?!

- Poisé.

- E como foi a viagem?

- Bem nostálgica. E muito interessante, na real. A minha avó não sabia da família dela há cinquenta e tantos anos. Ela apareceu lá e todo mundo achava que ela e meu avô tinham morrido desde muito jovens.

- Eita, que história! Me conta.

Ela se ajeitou na posição que tava, melhorando a postura. Engoliu um pedaço do sanduíche que ainda dançava em sua boca, deu um golão na latinha de Pepsi e seguiu.

- Cara, a gente só soube de tudo agora, ainda estamos até digerindo, mas minha avó, quando era moça, era bem bonita. Aí tinha dois irmãos lá da cidadezinha que flertavam com ela. E ela era muito desinteressada em pretendentes. Mas quando chegou a idade de casar e começaram a cobrar dela um marido, e os dois irmãos ainda levavam presentes e talz na porta dela, ela resolveu decidir a situação. Marcou com os dois na frente da casa onde morava e disse-lhes: "Tá vendo aquela árvore? Apostem uma corrida. Eu caso com o que chegar lá primeiro".

- Caralho!

- Poisé... Ela se justifica dizendo que pra ela tanto fazia, não sentia exatamente nada por nenhum dos dois. Aí, o mais velho ganhou a corrida e saiu comemorando aos pulos, dizendo-se vencedor. O mais novo, ao chegar atrasado na árvore, sentou-se encostado no caule e começou a chorar com as mãos na cabeça, desesperado. Foi ali que minha avó se apaixonou. Foi observando o lamentar do garoto por perdê-la. Aí a merda tava feita, prometeu a mão pra o irmão mais velho e se apaixonou pelo outro.

- Caramba, e como foi pra desfazer o casamento?

- Que nada, não foi simples assim. Ela casou com o mais velho. Primeiro ela enrolou muito. Ela era criada por uma madrinha. Aí mandaram uma carta pro Rio Grande do Norte pra onde os pais dela moravam avisando do casório e pedindo permissão. Naquela época as cartas demoravam e tal. E minha avó, apaixonada pelo outro que não o noivo, ficava de olho na chegada das cartas e rasgava as cartas de resposta dos pais com a aprovação. Aí acreditavam que teve problema com a primeira carta e mandavam outra e novamente a resposta era rasgada. Foi assim que minha avó enrolou vários anos. Ela só parou de rasgar as cartas quando o irmão mais novo disse que ia mudar pro Norte para tentar a vida.

- Poxa!

- Mas espera, a história não acabou. Ela casou e a noite de núpcias foi tão ruim que ela fugiu na madrugada e foi se encontrar com o irmão mais novo, meu avô Vizilmar.

- Vizilmar?

- Sim, Vizilmar. Aí ela disse que era apaixonada por ele. Aí fizeram amor e decidiram fugir. Ele já tinha passagem comprada para a manhã seguinte, um dia depois do casório do irmão. E ela disse que encontraria ele. Depois de uns dias, para que não suspeitassem que fugiram juntos. Aí ela fugiu e encontrou ele aqui no Pará, onde viveram a vida toda.

- E não procuraram por ela?

- Procuraram. Achavam que ela tinha fugido pro Rio Grande do Norte pra casa dos pais. E quando foram lá buscar, não acharam. E achavam que a família dela tava escondendo ela. E ficou por isso mesmo. Só que anos depois, o marido dela, o irmão mais velho, achou os dois vivendo aqui no Pará. Ele tinha vindo atrás do irmão, saber do paradeiro dele. Quando soube dos dois casados e com filhos, teve tanto desgosto que voltou pra cidade dizendo que descobriu que o irmão havia morrido há anos.

- Caramba.

- Poisé.

- E como eles tão hoje em dia?

- Ele morreu ano passado, meu avô. Ele era um cara super legal, sabe. E o pior é que ele sempre fazia uma piada de como ele e a minha avó se conheceram. Ele dizia cheio de graça "ela olhou e sorriu, mandioca no bombril". Nunca comentou a história real.

- E a sua avó?

- Tá bem. Mora com um dos filhos aqui em Belém, de vez em quando ela visita minha mãe aqui. Aí, como eu te disse, fomos lá em Quixeramobim, antes da pandemia, vê se algum parente deles ainda era vivo. Acho que ela decidiu ir lá depois que meu avô morreu.

- E como foi lá?

- A casa que ela morou não existia mais. O lugar virou uma venda de moto. Mas a árvore, a árvore que serviu de ponto de chegada pra corrida, onde meu avô chorou sua derrota que acabou dando a vitória a ele, continuava lá. E minha avó tocou na árvore e chorou. Foi bem emocionante, sabe?! Até me arrepio contando.

- E os parentes?

- Tinha uns sobrinhos do meu avô, filhos do irmão mais velho, saca? E duas irmãs da minha avó, que vieram do Rio Grande do Norte pra morar em Quixeramobim depois que ela fugiu. Mas foi legal, ficamos sabendo como a parentada viveu e morreu. E é isso.

Ainda conversamos um pouco, eu e a Noélia. E eu fui pra casa dormir imaginando todo aquele cenário e personagens de nomes marcantes e como eu fui sortudo de esbarrar com uma vizinha ébria e cheia de tantas narrativas interessantes.

Dias depois, subindo novamente a escada, dessa vez, com sacolas de compra, deparo-me, saindo da porta do 401, com uma senhorinha de cabeça chata. Eu sorri pra ela. E meus olhos encheram de lágrimas. Minha alma inteira sorriu numa quinta-feira como outra qualquer. Num fim de expediente. Numa escada de um prédio antigo como outros tantos dessa cidade e desse país.

- Oi, eu sou Thiago, vizinho novo.

- Olá, eu me chamo Noélia.

- Eu sei.


*Fotografia: Rune Enstad


Thiago Noronha nasceu em 1990 em Fortaleza. Escreve sobre o cotidiano, revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e relembra paixões. Diz-se dono de uma escrita cômico-afetiva cheia de críticas sociais.