Paganíssima Trindade | Mô Ribeiro

por João Gomes__






Enfrentando a melancolia com poemas tristes



Costuma-se dizer que poesia não vende, que é algo difícil de entender. Mas o que falar da poesia que expõe a dor, põe no colo e não coloca pra ninar? Já escrevia “o poetinha” Vinicius de Moraes É melhor ser alegre que ser triste”. Pois é com o último poema de Paganíssima Trindade, primeiro livro da mineira Mô Ribeiro que tento responder minhas questões: “eu queria certo dia/escrever um grande poema/e não falo do tamanho/mas da lida com o tema”. O poema se chama “Lida”, o que sugere muitas interpretações: é a sina da poeta, o desejo de ser lida ou o esforço fora do comum de seguir a labuta da vida em toda a sua “desrazão”?


É com Patti Smith, mas não se aparando a, que o livro indica a que vem logo em sua epígrafe curta e direta da escritora: “sempre trabalhei em surtos”. E é nessa oferta de busca de si que a realidade se organiza em versos que vai “pensando pelos dedos”, e o “pensamento-som-palavra” se concretiza numa poesia que, mesmo sem querer isso, reconforta por sua estética lírica. Não é da solidão que sua poesia transcende apenas, pois “o olho da solidão está cego/e seu ouvido está surdo”, porque o corpo que anda só por aí e que “tem medo da queda” chegou “à idade da coragem” e “brinca com o monstro/embaixo da cama”. Uma poesia que ouve o dentro, que não só interpreta as coisas, mas que se socorre numa busca de respostas. 


Publicado na Revista Mallarmagens, um poema da autora desdiz ou recria sua poética: “As palavras se misturam a esmo./Não tenho assunto./Os cães da vizinha quando latem/têm mais assunto que eu”. Sua poética vai além do assunto, e o tema, como seu desejo maior de lidar com ele, vai além por meio da precisão com que consegue dizer o que lhe vem. Junta-se a sensação, o som das palavras, sua grafia e o corte perfeito, com suas quebras, para que o verso aconteça em sua arquitetura etérea. Tudo isso sem forçar ou borrar, apesar de desconhecer como um poema se forma: “Sou prenha que mexe/cá dentro/na cria/mas não sabe o que faz”. Seria uma forma de dizer poeticamente: não explico minha poesia, só deixo que ela aconteça. 


Apesar de ser seu primeiro volume de poemas, a seleção é bem costurada, não oferta sobras de uma tristeza recente. “Na imobilidade o tempo/caminha a passos largos” e escreve fadada a viver “feito a chama de um maçarico”, como no poema de Ferreira Gullar. Mas dona da ironia de si e de tudo, refaz a trajetória para trazer à luz nem que seja “meio centímetro de breu”. Na medida que vamos lendo mais e mais seus poemas, vamos descobrindo o recital de preciosidades que a autora reservou do processo de escrita autobiográfico mas repleto de semelhanças com o todo flamejante da vida. Tanta destreza, às vezes encoberta pela desconfiança dos que são tristes, mas nunca com a obrigação de fazer agradar: “Não garanto tesouros/profundidade garanto/ainda que rasa”. É a ironia que faz pensar, e não a piada que é preciso que se saiba contar para haver o riso. 


Como o título pode sugerir, trindade dá a entender que a poeta nos dará três fatias de algo. Se o paganíssima tiver alguma associação ao paganismo, a religião dos gentios, talvez seja uma chave a mais para entender sua poética. Trindade, mesmo não significando isso, lembra tristeza em minha percepção. O livro é essencialmente triste, mas não tem como proposta empurrar mais ainda na fossa. É de uma gratidão tamanha que a poesia é direcionada, mas como provocou o filósofo francês André Gide: “É com bons sentimentos que se faz má literatura.”, é de tudo que incomoda que Mô Ribeiro pretende falar. Sem iludir ninguém, sem expor ninguém ao falar de suas dores, honesta consigo mesma e com o mundo: “Um dia inundo o mundo/Haverá sede/Lágrimas são salgadas”.


Ainda sobre o título, que junto com toda força dos poemas que engrandecem seu livro, Paganíssima Trindade pode sugerir que os poemas são de um cárcere religioso, como castigo por um afastamento ao divino e apego tão só à razão. Pela lógica, alguns poemas funcionam como pensamento filosófico transbordado de imagens. Não vou deixar de fazer minha ligação ao que já pude ler na poesia brasileira, mas este livro que acabo de ler me faz lembrar os dois primeiros volumes de poemas da poeta Hilda Hilst, Presságio e Balada para Alzira, publicados ambos no início dos anos 50. Não é essa feliz parecença que sinto que faz este livro ser o que ele é, mas sim o trabalho com as palavras que a poeta se encarregou: contar de si, mostrar do que pode a tristeza, e o quanto a poesia, tanto para quem escreve como para quem apenas lê, nos faz ter um força “para se alçar/feito asa”. 


Algumas leituras e releituras ainda serão poucas para se extrair tudo o que se acrescentou à poesia contemporânea brasileira com apenas um livro, o seu primeiro. É justamente a infinitude que nos leva nesse caminho de autoconhecimento por meio da arte, do ritmo poético. Seu processo de exposição e cura ressignifica: consegue fazer dos seus versos um porto de superação diante do caos da modernidade. Como no livro de memórias do norte-americano Andrew Solomon, O Demônio do Meio-Dia: Um Atlas da Depressão, que aborda o tema em relatos: “Na depressão, você não pensa que pôs um véu cinzento e está vendo o mundo através da névoa de um estado de espírito ruim. Você pensa que o véu foi retirado, o véu da felicidade, e que agora está realmente enxergando.” No poema “Desdepressão” conclui: “A desdepressão/é estar em brasa”. Pois é falando do que incomoda que se regula a temperatura do que é ser humano nesse mundo e mesmo sabendo que, à revelia, “Antes que fosse cedo/já era tarde”. Mas não tarde o bastante para não se compreender.


*posfácio do livro Paganíssima Trindade, de Mô Ribeiro




Mônica Ribeiro, ou Mô Ribeiro, é mineira de Belo Horizonte. Arquiteta de formação, descobriu-se poeta por insistência do inconsciente. Participou da antologia É Urgente o Amor, Edições Vieira da Silva, Portugal, e também da Antologia Ruínas, da Editora Patuá. Foi publicada pelas revistas Caliban, Germina, Literatura & Fechadura, Mallarmargens e Revista de Ouro. Publicou seu primeiro livros de poemas, Paganíssima Trindade (2020), pela Editora Penalux. Veio ao mundo em 1971 e deu trabalho para vir à tona: o parto foi de fórceps. A escrita, ao contrário, vem nas contrações que dão à luz seus poemas. Partos rápidos, mas não sem dor, e depois o cuidado com a cria. Assim é sua escrita.





João Gomes
(Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.