Das tripas coração, de Ezter Liu

 por Adriane Garcia__




Coletânea de contos vencedora do 5º Prêmio Pernambuco de Literatura, Das tripas coração, de Ezter Liu, compõe-se de histórias sobre mulheres. Os contos giram em torno do mundo feminino em sua complexidade, marcado pela opressão e suas consequências; entre elas a tristeza, a depressão, o desamor, a revolta, a revanche, a vingança. Os papéis são questionados porque demonstram sua falência na vida real, não há protegida nem proteção, o que há é simulacro para a manutenção do poder. Assim, a mulher a quem se ensinou o pacifismo e a fé em deus vê sua casa ruir; a maternidade aparece na sua face de abandono, com mães de carne e osso que amam e odeiam seus filhos. Se foi ensinado às mulheres que homens são sua salvação, Ezter Liu nos apresenta casos de homens que afogaram mulheres e de mulheres que, achando que montam armadilhas de sedução para os homens, acabam criando armadilhas para si mesmas.

Atualíssimos, os contos de Das tripas coração, acompanham mulheres que procuram delegacias e acionam a lei Maria da Penha, mulheres de quem a violência doméstica camuflada de amor tirou tudo, sobrando para Geysiele, por exemplo, o nariz quebrado, um olho roxo que mal conseguia enxergar e apenas um reduto de identidade: insistir para o delegado que seu nome é escrito com Y. Ezter Liu fala de mulheres que vão embora e deixam um reino para trás, Helenas que querem esquecer Menelaus; mulheres que preferem amar carneiros a homens, mulheres que amaram mulheres, mulheres que convivem com os homens e sua empáfia corretiva.

Muitas vozes que podem morar em uma mulher apenas, muitas histórias que podem compor um arquétipo, todas elas vão se juntar e soar em um grito, no conto Credo. Não lutar é perigoso, lutar é perigoso. A luta feminista acaba por encontrar o Estado – a cabeça de uma militante debaixo da bota de um policial – já que o patriarcado é um de seus alicerces e a família (sagrada família) é a célula mais antiga onde a misoginia e o machismo primeiro adoecem os indivíduos; em seguida, a sociedade.

Em Burn the witch, a fogueira novamente se levanta. Os homens já foram capazes de queimar suas filhas, esposas, tias, sobrinhas, mães, primas, avós, parteiras, conhecidas, em espetáculos públicos e aos milhares. Um genocídio registrado que Ezter Liu inverte, fazendo com que assim, talvez, mudando a vítima, se perceba melhor o crime e o absurdo. A busca pela liberdade pode vir “etérea como se saísse do frasco de acetona”. São esses elementos comuns ao mundo das mulheres e ao mundo a que as mulheres foram confinadas que aparecem com destaque nos contos de Das tripas coração.

A historiadora Gerda Lerner em A criação do patriarcado, fala da importância dos registros simbólicos: “A hegemonia dos homens sobre o sistema de símbolos tomou duas formas: privação educacional das mulheres e monopólio masculino sobre sua definição. (...) Os homens explicaram o mundo em seus próprios termos e definiram as questões importantes de modo a se colocarem no centro do discurso”. É interessante notar que o mundo feminino escrito e definido pelo homem, não raro, está ligado aos sentimentos e, portanto, à fraqueza; que os objetos e cenários que cercam o mundo feminino estão destinados ao uso prático e reles, jamais à abstração, “suas experiências carregam o estigma da insignificância”. A importância de livros como Das tripas coração é justamente desfazer esse proposital engano e trazer aquilo que é menosprezado como feminino justamente no que tem de força e símbolo regente do real. Por muito tempo, os artistas mentiram sobre as mulheres, no paradoxal movimento de nada saber sobre elas e de formá-las (colocar na fôrma), seres delicados, apaixonados, desmaiantes ou, no outro extremo, seres irracionais, descontroladas, loucas. Ezter Liu nos conta de mulheres verossímeis, complexas, em guerra interior e exterior para vencer seus inimigos, quer seja o amor romântico ou uma autoestima estraçalhada, quer seja o opressor direto “fulano bêbado deitado no sofá da sala grande”; mulheres que querem viver, mulheres que querem se matar, mulheres que questionam tudo que lhes foi ardilosamente ensinado e mulheres engessadas pelo medo; mulheres que trabalham sem parar de modo que o esforço do corpo substitua uma triste memória, mulheres de várias classes sociais, pois em todas as classes sociais a mulher recebe o papel da subordinação.

Forte, com cenas trágicas, muitas vezes, Das tripas coração fala sobre este mundo e, especificamente, se foca sobre metade da humanidade: a metade que ainda é vendida criança para casamentos arranjados, a metade que ainda sofre mutilação genital, a metade que é vendida na publicidade como mercadoria, a metade que não pode andar com tranquilidade na rua à noite, a metade que trabalha mais e ganha menos, a metade que é assassinada em nome da honra masculina, a metade que é traficada para a prostituição, a metade que é submetida a regras e leis sobre seu próprio corpo criadas pela outra metade.

Além da importância temática, Das tripas coração é um livro que prima pela linguagem literária: em frases curtas, ausência de vírgula nas enumerações, atenção ao ritmo com aproveitamento do ponto final, clareza, profusão de imagens e o uso de metáforas que leva a uma eficiente aproximação com a poesia.

Fumaça

No dia em que a sede do engenho pegou fogo ela estava em cima do morro no começo da chã vendo o vermelho alaranjado das labaredas: imprevisíveis e imensas saindo pelas janelas. O fogo fazia som de espetáculo. A fumaça inventava nuvens novas. Pretas. Uma lufada de fogo alcançou o juazeiro do oitão que foi logo virando árvore de natal. Ela olhava de longe e ria alto. Era a coisa mais bonita que já tinha visto num final de tarde. Dentro do casarão: fulano bêbado deitado no sofá da sala grande. Fulano desmaiado de inalar fumaça. Fulano morto perto da porta. A cristaleira ardia na parede do fundo e as taças explodiam jogando cacos de vidro pra todos os lados. As cortinas brancas mudavam de cor. Os retratos de família na parede do corredor com os antepassados presos em suas molduras. Os santos do oratório com seus olhos de desespero derretendo lentos sem sair do lugar. A fumaça tomava conta acinzentando tudo. O cheiro forte de queimado era a única sensação que ficava. Ela assistia a tudo gargalhando a imagem ficava embaçada e depois sumia. Depois só canavial verde. Depois só escuro. Depois abrir os olhos. Depois fim do sonho. Passados oito meses do pesadelo recorrente ela começou a acordar sentindo um cheiro forte de fumaça. Cheiro impregnado no nariz que durava a manhã inteira ia afracando depois do almoço e só passava mesmo na hora de dormir. Procurando alívio ela comprava lavandas alfazemas alecrins jasmins anis canelas e cravos-da-índia. E sobre as brasas do fogão de ferro fundido uma panela com água fervia as especiarias incensando os cômodos as cortinas as colchas de cama os móveis até penetrar no miolo dos tijolos das espessas paredes da casa. Mas de noite o sonho outra vez e o cheiro de novo. Procurando alívio ela comprou velas perfumadas espalhou sobre os móveis e acendeu todas de uma vez. Entupiu as narinas com unguento de cânfora. Esfregou nos pulsos óleos essenciais. Mas o cheiro não queria passar. Resolveu parar de dormir pra parar de sonhar e parar de sentir. Ficava de madrugada na varanda vendo assombração de perna cabeluda e esperando de olhos grelados que o sol voltasse logo e pudesse sentir o cheiro fresco de seus pés macerando o capim. E por mais oito meses foi assim que ela viveu: insone. Cansada. Desperdiçando noites. Não tinha mais o sonho e não sentia mais o cheiro ardido da fumaça. Cochilava um pouco de dia e em pé. Fulano nem percebia continuava dormindo bêbado no sofá da casa. Até que o cansaço foi ficando insuportável ela foi ficando fina e em pouco tempo envelheceu anos. Cabelos novos e prateados apareceram. Se amoleceram suas carnes e até a voz afracou. E fulano lá deitado no sofá da casa grande. Até que ela cansou de ficar acordada. O alívio de não ter o sonho tinha virado o tormento de não ter o sono. Naquela tarde bonita de maio enquanto fulano dormia ela pegou os fósforos na mesinha do oratório pegou o galão de querosene no quartinho dos fundos respirou profunda acalmando os nervos. Pensou: Alívio. Lembrou do sonho e do cheiro. Alívio. Lembrou de si mesma como era antes. Alívio. Respirou de novo e tomou as providências sem pensar em mais nada. Depois foi pra cima do morro. Assistir com seus olhos de desespero e esperança. A coisa mais bonita que poderia assistir num final de tarde.”

(p. 57-58)



***

Das tripas coração

Ezter Liu

Contos

Editora CEPE

2018



E
zter Liu nasceu no Recife, mas mora em Carpina desde criança. Graduada em Letras, escritora de prosa e poesia, desde 2005 tem seus textos publicados em várias coletâneas na região e no Estado. Em 2015, pela Porta Aberta Editora Independente, lançou o primeiro livro: Vermelho Alcalino (poemas). Fotografia: Meire Lemos






Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019).