Garagem do paraíso, Leo Barth

 por Wellington Amancio da Silva__





Reflexões sobre um poema de Barth


Leo Barth é o anti-herói ficcional e heterônomo do Leonardo Rodrigues Simião Pereira, nascido em 1984. Como sujeito inquieto e australoboteco, emergiu da underground pós-moderno e daí transcendeu. Saiu do interior das Alagoas para estudar na capital (e por lá descobriu que sua alma também é cínica (no sentido clássico, de Diógenes de Sinope), como as fachadas duras dos edifícios do centro corroído pela maresia). Descobri-o como escritor em 2014, no Facebook, onde publicava seus poemas estrepitosos, seus aforismos e sentenças sobre o mundo, sobre política, religião, nihilismo, literatura, cinema, no senses e também alusões à sua personalidade multifacetada, em que realidade, ficção e destilados amalgamam-se: “Mas ele é um ‘demo’ que assume paixão por algumas paixões humanas, e algumas vezes se faz visto, outras, penso que se faz invisível na sociedade.”. Leo Barth define assim seu avatar, no escopo, talvez, de precisar a condição ontológica do humano em relação ao mundo atual, como possibilidade de sanar demandas que transcendem a lógica conhecida:


Esses dias acabei esbarrando na série baseada no conto do Neil Gaiman, “American Gods” que apresenta entidades sobrevivendo na pós-modernidade... Tem uma que apresenta um certo instinto de abate, o Czernobog que acabei colocando na foto do perfil [do Facebook]. Mas foi uma descoberta pós Barth (2014).


Sobre sua poesia não é possível tratá-la devida e satisfatoriamente sem utilizar-se de amplo estudo, hoje necessário, eu afirmo. Todavia, me atrevo desafiadamente a discorrer acerca de uma das quais gosto bastante, a “Certo dia, esquizofrenia” (p.63), que se segue abaixo, e talvez, quem sabe, ainda recitada, em tom solene, por uma espécie de Czernobog alagoano iniciado nos versos de Poe:

Certo dia acordei com meu cadáver na cama/ Pensei um sonho, convulsão ou droga colorida/ —seco/ Era dia frio e às vezes chovia/Comecei a tomar café (suas pernas ou minhas pernas) levemente dobradas/e o rosto nas sombras/A morte sorria a olhar o teto manchado/Como linda prostituta com roupa eclesiástica/Alisando um boi sentado como cão de guarda/Babando compulsivamente /De lá pra cá misturo as verdades.

O poeta abre o verso afirmando: “Certo dia acordei com meu cadáver na cama”. Me assombro com a potência ultrarrealista da sentença — de trazer o futuro irremediável, a “morte”, ao presente, e vê-la racionalmente em seu corpo que ainda desperta, mas que já traz (desde o nascituro) os sinais-para-o-fim; me choco ainda mais por esse tratamento kafkiano, por essa análise franca, que se permite perder-se na e retornar da loucura, deste estado “alterado” da consciência, deste buraco onírico: “Pensei um sonho, convulsão ou droga colorida/ —seco”. E sobre o que pensou o poeta adjetiva “—seco”, talvez no sentido de “vazio” (de uma garrafa oca, de que fora cheia de uma “cerveja recheada?”), talvez também no sentido existencial de “dureza”, de “rudeza”. O poeta diz uma só palavra de desfecho: “—seco”, e nos tira a venda.

Em seguida ele continua: “Era dia frio e às vezes chovia/Comecei a tomar café (suas pernas ou minhas pernas) levemente dobradas/e o rosto nas sombras”. O poeta contempla a natureza (“dia frio”) e sabe do que se trata, sempre saberá do que se trata, porque o poeta é uma espécie de anacoreta qui studia in contemplatione rerum sapientes, e reconhece que “às vezes chovia”. Ora, o acontecimento bucólico do “tomar café” — ele enfatiza — é-lhe indiferente diante ao absurdo de não saber, ou pouco se importar, se são “suas pernas ou minhas pernas”, e ele simplesmente segue tomando o seu café, contra qualquer estranhamento. Por quê? Porque para aquele que pela escrita avança sobremaneira e para além da fronteira entre ficção e realidade, pouco se importa “se são suas ou não as próprias pernas” — quando de qualquer maneira este poeta lúcido1 simplesmente avançará, pela escrita, sua verdadeira pátria. Talvez no corriqueiro gesto de tomar café o poeta veja sentada a sua mesa a morte que sorrir... (“A morte sorria a olhar o teto manchado”) motivada por uma “mancha no teto” que é, para além da sua sutileza de “mancha” no teto, o “Sinal” definitivo de que tudo passa, mas antes acena com uma “mancha” (elemento misto do efeito do tempo que degrada e do estigma de imperfeição que contra tudo investe, deixando suas máculas). E uma morte que sorrir para o teto (uma morte aparentemente tola), mas já ignorou os feitos épicos dos homens há muito tempo. Então, saibamos todos nós! – “o teto manchado” é o limite do céu deste mundo!

Sim. E a morte que sorri tem sua indumentária típica, segundo o horizonte simbólico do poeta: “Como linda prostituta com roupa eclesiástica/Alisando um boi sentado como cão de guarda”. E esse boi “babando compulsivamente” nada mais é que a multidão em geral que rumina — a turbamulta em geral, a multidão, que não sabe para onde vai nem de onde veio; na verdade pouco se importa com tais questões filosóficas. Por causa disso, torna-se “cão de guarda” de tudo o que causa um final banal e absurdo para o que é humano; a multidão ignora o humano, porque o desconhece: a humanidade não é para a multidão. Dizemos que a multidão é para morte um boi-evasivo!

Ora, por causa destas aparições, e “o rosto nas sombras”, (eis as epifanias malassombradas), que ao um só tempo são metafísicas e traumáticas — “De lá pra cá misturo as verdades”, diz o poeta. E é por saber, com tamanha convicção, que ele próprio “mistura as realidades” (e ele sabe sim [mais do que a “fauna cega dos viventes comuns”, a multidão], e ele sabe muito acerca destas realidades, também como ficcionais e lisérgicas) que é poeta e precisa muito escrever sobre tudo isso que vê; ele sabe que precisa escrever desta forma e não de outra, e “esta Forma” é conditio sine qua non poderia ele dizer o que diz. E ele ao saber que sabe mais do que a “fauna cega dos viventes comuns” tem suas miragens—vê a morte sorrir para o teto. E, enquanto a morte sorrir para o teto, o poeta escreve.

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1 - Um poeta quando muito lúcio sabe que “loucura”, “ficção”, “lisérgica” alcoólica e “realidade” são dimensões amigas da escrita, e a escrita é mesmo este exercício perpétuo de lucidez, de investida tácita sobre as instâncias de realidades do mundo. 


* Texto publicado originalmente como pósfáscio do livro.

Para adquirir o livro: Edições Parresia



Leo Barth, nasceu em 1984. Delmirense dividido entre sertões e capital do caos. Começou a escrever por causa da Teologia. “Homem que nasceu morto, e que se acha em cada esquina, poeta de bêbados e esquizofrênicos, delimitado pelo caos particular, e autor de nada”. É notável entre os novos poetas trágicos-febris, um dos nossos maiores poeta do underground alagoano. Tem uma filosofia existencial-literária parecida com o grande Macedônio Fernandez, que escrevia compulsivamente sem muito importar-se com publicações. Boêmio, Machadiano e acadêmico, o autor possui centenas de poemas inéditos, produzindo-os desde 2001. É co-fundador do grupo “Arborosa”, de poesia, arte visual e fotografia, e editor do staff da Edições Parresia. Publicou na Utsanga (Itália) revista de poesia experimental, e em revistas brasileiras. 



Wellington Amancio da Silva é professor, ecólogo e escritor. Publicou livros de ficção, de ensaios e artigos acadêmicos em lugares interessantes. Destacam-se "Ontologia e Linguagem" (2014), "Figuras da indiferença" (2019), "o reneval" (2018), “Primeiros poema soturnos" (2009), "Apoteose de Demerval Carmo-Santo" (2019). Faz parte do editorial da Utsanga (Itália) da Revista de História da UEG, entre outras. Fundou uma editora, as Edições Parresia. Dedica-se à caligrafia assêmica, ao desenho experimental, à fotografia, à infografia, à música mínima e experimental. contato@edicoesparresia.com.br