Escarlate | Adriano B. Espíndola Santos

 por Adriano B. Espíndola Santos__

Fotografia: Daniel Tafjord

 

O objetivo de Escarlate era nada definido, pelo menos para mim, com uma imprecisão que colocava, entre nós, uma barreira intransponível. Difícil era suportar a sua incerteza pueril, se a vida em si é dúvida; prega peça, o caralho. E ela fazia de propósito, tinha essa impressão muito clara: ser vaga.


Sou, de certo modo, um sujeito regrado, comprometido. Mas tem horas que dá uma viração, o juízo atordoa, e faço as maiores atrocidades – comigo, claro.


Quarentena. 10º dia começou assim: peguei uma tesoura e cortei o máximo que pude os meus pelos, da cabeça, pubianos, a porra toda. Resultado: uma bosta. E isso me obrigou a ficar mais uma semana trancafiado, porque não tinha coragem de sair pelas ruas, ainda que vazias – podia me encontrar com Escarlate, a dama da sorte.


Esperei o cabelo preencher as abundantes falhas. Não teve jeito. Soquei um boné e parti para o ataque, enfrentar a rua. Naturalmente, com o tumulto todo que é a vida urbana, não saía mais que três vezes por semana, e isso me remete a banco, supermercado e médico. Fazia por obrigação. Escarlate sabia disso e zombava de mim, porque punha uma série de apetrechos de ginástica – meias, roupas coladas e tiara na testa –, e zarpava, serelepe, muito despreocupada com o meu destino.


17º dia, e ganhei a boca do mundo. Antes, seu Genésio, o porteiro, de cabeça baixa, perguntou por Escarlate. Não quis saber de mim. Talvez já soubesse tudo de mim. Decerto, sentia falta de Escarlate e troçava do meu abandono. “Deve estar bem”. Nenhuma palavra mais, dado o meu tom seco. O homem se esquivou, mesmo na cadeira, contra a parede. Buscou uma lista telefônica amarela, uma relíquia nessa época, porque não tinha outro objeto para pegar naquela hora, e começou a folhear; para quê?


Enfim, consegui romper a barreira do prédio e senti o cheiro do ar. “Ar tem cheiro?”, pensei. Ora, mamãe falava essas bobeiras de ar ter cheiro, “cheiro de mato, de terra molhada”; bonitinho e tal, mas achava algo fantasioso, alucinação. “Meu filho, faz muito tempo que não vou ao meu interior, mas disso eu não me esqueço!”. Passou o tempo, e estava eu sentindo, pela primeira vez, o cheiro do vento. O ar fresco atravessou meu corpo e, não só, adentrou as narinas, potente. Sinônimo de que ainda tinha sentidos, e fiquei feliz por isso; uma felicidade tão ingênua que tentei rompê-la de imediato; não se pode ser ingênuo aos quarenta e dois anos de idade. Andei, próximo à orla – lógico, moro perto da orla –, para me ausentar das calçadas, ainda movimentadas, de óculos escuros, boné, todo monocromático em tom negro; queria, justamente, passar despercebido, ou demonstrar o meu luto, o meu desinteresse de ter contato com as pessoas.


Do Super, abarrotado de compras, esbaforido, voltei com uma sensação de querer mais. Estranho. Nunca quis perder muito tempo nas ruas – para mim, estar nas ruas, ficar sentado, olhando para o nada, me causava asco; “são seres desocupados”. Será que a prisão forçada teria me feito enxergar alguma novidade?


25º dia: a depressão bateu forte. Depressão? Não propriamente a doença, essa coisa melosa que dizem, mas um abatimento geral. Mal conseguia sair da cama. Passei o dia deitado – talvez sessenta por cento do dia, melhor dizendo. Lembrei de tudo que me fazia falta, o meu gato Louis, que se foi ano passado; a minha diarista, dona Zuleide, que havia dispensado bem antes da pandemia, por insubordinação: não havia acatado minhas ordens – ainda que fosse exagerada, era a única pessoa que cuidava verdadeiramente de mim, desde que perdi minha mãe –, mas pretendo recontratá-la, com alguma diferença de remuneração, para que suporte os meus ímpetos, como Escarlate dizia; e, óbvio, Escarlate, a deusa do inesperado.


Como o novo, o súbito, o incontrolável, me faz falta; não posso nem imaginar que loucura é essa que me veste. “Vamos, vamos, se arruma! Vamos tomar um sorvete na Barra!”. Puta merda. E agora eu me lembro, chorando e sorrindo, desses dias malucos, em que topei subir o Morro, fazer trilha, acampar. Nos últimos meses, bati o pé e declarei: “Escarlate, quantos anos você tem? 35, certo? Porra, isso é coisa de quem não tem o que fazer; perder tempo com essas modinhas adolescentes: não! Preciso de certeza: certeza!”. Ela saiu desconsolada, foi para a casa da mãe; supliquei que voltasse, e voltou, para ficar mais uns tantos dias. Degringolou, de novo. Dessa vez, sumiu sem deixar aviso, enquanto dormia no outro quarto.


30º dia. Só não me descabelei porque me faltavam cabelos. Poucos os que tinha; praticamente havia raspado rente ao couro. Corri pela sala do apartamento. Minha vizinha esquizofrênica de baixo batia com o cabo da vassoura. Bati de volta e continuei em círculos, por todo o apartamento, indo e vindo desfrutando, como nunca, de todos os mínimos compartimentos. Tomei um banho demorado. Resolvi pegar um ar puro. Falavam de lockdown. Cacete, tinha de aproveitar o restinho de liberdade. Paramentado feito um androide, um homem do futuro, fui achincalhado pelo olhar de Genésio, que, ao mesmo tempo, me fulminava, e seguramente pensava: “Dona Escarlate merecia coisa melhor”. Lasquei um tapa na mesa dele e disse: “O que foi, que cara é essa! Te dei bom dia e você resmungou! Vai se danar, Genésio!”. O homem murchou, afundado na cadeira de medo. Era franzino. Pensei que, coitado, poderia ser uma vítima desse vírus maldito. Deixei para lá. Estávamos todos perturbados. Qual animal enjaulado que não ataca um invasor? Vi num vídeo aleatório, uns seis leões que atacaram um domador num circo. Torci pelos leões.


Dei uma volta na orla, e uma horda de lunáticos, que fazia exaltação ao lunático mor, me puxou para o desfile bizarro, pensando que era um deles. Logo empurrei o tiozinho que agarrava o meu braço, com cara de bêbado; ele caiu e veio a gangue para cima de mim. Saí correndo. Ufa. Ouvi, já longe: “Comunista de merda! Volta aqui, vamos te fuzilar”. Menos mal que um fantasiado de militar tinha um fuzil de brinquedo. Mas sabe-se lá se nessa paranoia não tinha um realmente armado. Passeio frustrado. Voltei ao lar, suado, derrotado. Genésio ainda se escorava no azulejo; pedi desculpas, ele balançou a cabeça, trincando os dentes.


40º dia. Surtei que queria companhia. Poderia comprar nesses aplicativos uma boneca inflável; mas para quê? Queria algo vivo, estimulante. Pensei em fazer uma armadilha para capturar uma rolinha que pousasse bondosamente na minha varanda. Espalhei arroz por toda parte. Mas, sem um verde, como ela viria? Todas as plantas que Escarlate deixou morreram. Joguei vaso com tudo fora, para não lembrar dela. Foi aí que, como já ia sair mesmo para o Super, pensei em comprar de algum passante um cachorro – lógico, vacinado, tratado, não iria pegar um vira-lata rabugento.


Vi uma senhora bem velhinha com sua cuidadora e com sua bengala lustrosa, vindo em minha direção, puxando um trocinho que devia ser um pinscher ou um demônio da tasmânia, de tão agitado que era. O bicho era literalmente arrastado. Parece que queria voltar, fazer o sentido contrário quando me viu. Pensei em roubar, mas a velha endinheirada iria chamar a polícia, e eu estaria imediatamente em cana, dividindo a cela com seres virulentos. Não. Cheguei perto e perguntei se o cachorrinho não teria sido, por acaso, colhido da rua. “Não, senhor, o tenho desde bebê; há sete anos”. Disse que sentia muita falta do meu, que teria fugido antes da pandemia; que precisava encontrá-lo; que estava morrendo sentindo sua falta. Enxuguei o nariz com um papel guardado, demonstrando minha comoção, e a velha apressou o passo, ela agora puxando a sua cuidadora; e o cachorro bolando nas pedras na calçada.


Não deu importância e, ainda por cima, achava bem que era um louco ou um infectado. Falhei no plano. Mas, pelo menos, peguei uma muda de uma plantinha com flor; não me pergunte o nome. No caminho de volta, me penitenciava pela falta de criatividade, devia ter colocado feijões num algodão, como teria aprendido no infantil.


45º dia. De fato, agora, lockdown. Não fossem meus pés de feijão, nem sei. Teria me jogado, talvez… Olhava muito mais para as ruas. Queria entender os mistérios das ruas. Pessoas não circulavam mais, só os policiais que, volta e meia, ligavam a sirene para assustar; como se já não fossem suficientes as sirenes frenéticas das ambulâncias.


Avistei uma alma leve, parecia dançar: uma bailarina. Tinha a silhueta de Escarlate. Brilhava como Escarlate. Coçava os olhas, podia ser alucinação; mas aquilo não saía. Não. Estava certo de que era alucinação. Pirava naquele apartamento. Sentia falta até de Genésio. Ouvi rumores, entre as frestas das portas, de que teria pegado a maldita doença; coitado. Além de tudo, estávamos sem porteiro, sem nada. Não constatei, não fui conferir, mas intuí.


A mesma imagem bailava ao longe, encostando na água salgada, molhando os pés livres. Eu me senti ali, liberto, com ela. Pus-me a dançar na sala. Escutei, longe, batidas de cabo de vassoura; era a minha vizinha. Nada me demoveria disso.


Foi um dia lindo. Inteiro meu e de Escarlate. Cobríamo-nos de incertezas. Ela expurgava de mim as preocupações. Agora, entendia o poder da liberdade.

 



Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.