Os livros são filhos rebeldes | Tadeu Sarmento

 

por Taciana Oliveira___




Nesta edição da seção Falatório, uma conversa com o escritor Tadeu Sarmento. Na pauta o lançamento do seu livro "O Gato da Árvore dos Desejos" (editora Abacatte, 2021). Para Sarmento “o escritor precisa compreender que crianças e jovens seguem consumindo narrativas nas redes sociais, nos serviços de streaming, estando disposto a aproveitar o que de melhor desses novos meios de contar histórias pode ser transposto para a literatura.”

 

1 - No Suplemento Cultural de Pernambuco, publicado em fevereiro de 2015, por ocasião do lançamento do seu Romance Associação Robert Walser para sósias anônimos, você afirma: Não quero ser um escritor lido só por escritores, críticos e outros golfinhos.

Ao escrever, você “escolhe” um público-alvo?

 

Sim, pelo menos a intenção inicial é essa. Penso que, por si só, escrever já seja submeter a palavra, ao mesmo tempo, a um princípio de exclusão e igualdade. Quem escreve procura seu público-alvo. A linguagem que escolhemos, as imagens que utilizamos, delimitam o acesso ao nosso estilo de pensamento. Claro que o bacana é quando essa “flecha endereçada” atinge outros destinatários. O cometa é um sol que não deu certo, por exemplo, que até hoje é meu livro mais vendido, foi escrito para crianças e jovens e hoje é lido também por adultos. É um livro que não se manteve fiel ao seu propósito original e isso é ótimo. No fim das contas, os livros não costumam trilhar o mesmo caminho que inicialmente escolhemos para eles. São filhos rebeldes.

 

2 - Como e quando você se descobriu escritor? Quem ou o quê você destacaria como inspiração para o seu processo criativo?

 

Minha descoberta como escritor é parte da minha descoberta como leitor. Foi uma consequência natural da minha paixão pela leitura. Claro que falo aqui da escrita íntima, que exercitamos para nos transformar e transformar nossa vida ao redor, ou para conhecer mais a nós mesmos e aos outros, esse tipo de escrita, em geral executada a partir da imitação dos nossos primeiros modelos literários. O outro tipo de escrita, a pública, pressupõe outro nível de seriedade e disposição para participar do jogo do mercado, da cena editorial, das redes sociais. Curiosamente, aprendi a ler aos quatro anos de idade e comecei a escrever lá pelos quinze, mas só entrei nessa nova etapa, digamos assim, mais profissional, tardiamente, com quase quarenta anos, quando da publicação do meu romance Associação Robert Walser para sósias anônimos, vencedor do Prêmio Pernambuco. Quanto à inspiração, ela vem dos livros que leio, dos filmes que vejo e da minha própria experiência... a Adriane Garcia me dá muitas ideias também, para eu desenvolver.

 

3 - Pensando no conjunto da sua produção literária, nos seus últimos livros publicados, em termos de gênero, forma e estrutura narrativa, o que O Gato da Árvore dos Desejos, representa para tua trajetória?

 

Representa a continuidade do meu projeto, qual seja, o de me dedicar mais à literatura dita infantojuvenil e ao cinema. Sim, cinema, pois pretendo trabalhar em breve em um roteiro de longa-metragem de animação inspirado n’O gato da árvore dos desejos. Representa ainda um salto na minha imaginação, e no meu uso e estudo das fábulas para tratar de assuntos “espinhosos” para o público mais jovem e mais um passo conquistado rumo à total liberdade criativa da minha escrita, mas, sobretudo, representa o primeiro livro de uma parceria duradoura com a artista Silvana de Menezes e com a Editora Lê – com a qual provavelmente publicarei mais dois livros esse ano.

 

4 – Qual a diferença de escrever para o público adulto e infantil?

 

De um modo geral, o adulto aceita de bom grado qualquer artificialismo que esconda a inabilidade de um escritor em executar determinada ideia, desde que seu truque passe pelo elogio, ou autoelogio, da sua inteligência como leitor. Já a criança e o jovem não aceitam esse tipo de dissimulação e, para se comunicar com eles, o escritor necessita, de fato, de estar despido de tudo que é falso e presunçoso. Domínio da história, conhecimento dos próprios personagens, honestidade e ritmo, é tudo o que crianças e jovens pedem dos livros. Os adultos, além da dissimulação, às vezes pedem também afagos, curtidas e aceitações de pedidos de amizade.

 



5 – O projeto gráfico do seu livro O Gato da Árvore dos Desejos conta com as ilustrações da artista mineira, Silvana de Menezes. Como se deu o encontro do escritor com a ilustradora?

 

Conheci a Silvana em 2015, no lançamento do Só, com peixes, da Adriane Garcia e, desde então, alimento a vontade dessa parceria, concretizada agora pela primeira vez. Para mim, a Silvana é uma das grandes artistas e ilustradoras do Brasil e do mundo, ombro a ombro com gigantes como Maurice Sendak e Alasdair Gray. Hoje somos amigos. Para mim, é um privilégio e uma honra trabalhar com ela. Ela tem uma imaginação poderosa e muito traquejo e conhecimento nessa seara, já que há mais de vinte anos escreve e ilustra livros para crianças e jovens.

 

6 - Segundo dados de uma matéria publicada no G1, em setembro de 2020, as denúncias de violência contra crianças e adolescentes caíram 12% no Brasil durante a pandemia. Para Ariel Coelho, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o fechamento das escolas por conta da quarentena obrigatória pode ter influenciado na queda das denúncias. O Gato da Árvore dos Desejos, traz luz a um problema que aflige a milhares de crianças em todo o mundo: o abuso infantil. Como você analisa as polêmicas que envolvem a falta de políticas públicas para o ensino de educação sexual nas escolas do nosso país?

 

Pelo visto, este é um governo que não tem política pública para nada, salvo para as armas, o desmatamento e a sabotagem do combate à pandemia. Para a educação sexual nas escolas menos ainda, sobretudo por se tratar de um tema que atiça o falso moralismo dos fascistas, que adoram usar qualquer bandeira moral como cortina de fumaça para esconder suas reais intenções. Uma criança que não aprende sobre sexualidade na escola é uma criança indefesa, incapaz de identificar determinados toques ou investidas como inapropriados – e buscar ajuda. Eliminar a educação sexual nas escolas é um projeto caro a abusadores e pedófilos em potencial.

 

7 - De acordo com a Childhod Brasil aproximadamente 70% dos casos de violência sexual contra crianças acontecem no âmbito familiar (dados apresentados no site Justificando). Pais, padrastos, mães, tios e avós representam a maior parte dos envolvidos nas ocorrências. Em 81,6% dos casos, o abusador é do sexo masculino. Como foi mergulhar em um tema tão espinhoso e desenvolver personagens tão delicados?

 

Terrível e, ao mesmo tempo, bem recompensador. Quando terminei o livro, senti que tinha feito algo que, além de bonito, era útil. A questão central para mim era só uma: como falar de abuso infantil para uma criança de oito, dez anos? Acredito ter chegado a uma forma; poética, sobretudo. Basta notar que o livro não possui uma única referência direta ao assunto e, no entanto, o assunto está nas entrelinhas de tudo, como uma sombra ameaçadora. Enfim, se meu livro chegar um dia a ajudar uma criança que seja, a identificar que está passando por um problema e procurar ajuda, já terá cumprido seu papel. O silêncio, não falar disso, como disse na pergunta anterior, só favorece o abusador.

 

8 - O escritor e cartunista Ziraldo, em entrevista para o Correio Brasiliense no ano de 2010, respondeu sobre o que era necessário para estimular a leitura entre crianças e adolescentes: Ler com eles. Discuta o livro que está lendo, leve-os para museus, livrarias, encha a casa de livros.

 Qual seria hoje a sua resposta para a mesma pergunta?  E quais livros você indicaria para um leitor iniciante em qualquer faixa-etária?

 

O acesso, da forma que disse Ziraldo, continua fundamental, o que inclui baratear o preço dos livros e investir em bibliotecas públicas de qualidade, com profissionais qualificados e em locais de fácil chegada. Do outro lado da ponta, o escritor precisa ouvir o que as crianças e os jovens têm a dizer, para escrever, na língua deles, um assunto que lhes interessa. Sobretudo, o escritor precisa compreender que crianças e jovens seguem consumindo narrativas nas redes sociais, nos serviços de streaming, estando disposto a aproveitar o que de melhor desses novos meios de contar histórias pode ser transposto para a literatura. Para leitores iniciantes indico Aline Abreu, Mario Vale, John Boyne, Nara Vidal, Markus Zusak, Marilda Castanha, Ruth Rocha, Roddy Dolly, Décio Teobaldo, Arden Druce.

 

9 – Qual seu próximo projeto? Você está trabalhando em um novo livro? O que você pode adiantar pra gente?

 

Creio que, para mim, 2021 será um ano no qual colherei os frutos de três anos de trabalho ininterrupto. Tenho mais dois livros no forno para sair pela Editora Lê; um roteiro de cinema em análise em um festival; um projeto de série para TV sendo negociado com uma produtora, além de vários romances pendurados em prêmios literários de inéditos. Em julho devo lançar um thriller de suspense sobre uma garota com uma doença rara que precisa fingir nas redes sociais que seus pais assassinados estão vivos. Será lançado pela nova casa editorial do Daniel Valentim, ex-editor da lendária Bartlebee, que esse ano vai entrar com tudo no mercado do terror e da ficção estranha, inclusive com traduções inéditas no Brasil.

 







Tadeu Sarmento é autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos e E se Deus for um de nós?, entre outros. Ganhou o II Prêmio Pernambuco de Literatura e o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura de 2016, com Um Carro Capota na Lua, publicado pela Tercetto. Em 2017, conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com o juvenil O Cometa é um Sol que não deu Certo, publicado pela Edições SM. Lançou em 2021, O Gato da Árvore dos Desejos (editora Abacatte).

 







Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.