Pulsão de Língua, de Daniel Glaydson Ribeiro

 por Iaranda Barbosa___

 




O sentimento dos versos

 

Palavra-som-imagem. Assim se apresenta a tríade que sustenta os experimentalismos verbo-voco-visuais de Daniel Glaydson, em Pulsão de Língua, um inquietante livro de poemas, devido às provocações relacionadas tanto às experiências sensoriais quanto às sociais.

Cada poema nos leva a reflexões e à busca por referentes empíricos, subjetivos, filosóficos, históricos, existencialistas. O exegeta é intimado a fazer parte do processo criativo, a renunciar ao senso comum, a abandonar a zona de conforto. Nesse sentido, os versos de Daniel Glaydson se inserem com perfeição nos chamados movimentos deslocadores, pois somos por eles impelidos a estabelecer relações associativas entre os mais diversos temas e a sentirmos o pulsar de língua, sobretudo, quando nos deixamos levar pelas combinações semânticas e morfossintáticas que o poeta explora. Ademais, são pulsantes os processos fonológicos, as quebras da ordem sintática, a criação de estruturas semânticas, a intertextualidade e a interdiscursividade, elementos esses que nos levam a fabricar e fomentar no imaginário novas imagens:

 

Chegou o momento de lembrar da fome

e da sede, porque ouviu-se uma orquestra

de estômagos e intestinos e das peles labiais

ressecadas e brancas, quebrando ao chão.

 

então foi preciso chamar os peixes,

trocar com eles uma ideia, encantá-los

e comê-los. e aprendeu-se a mergulhar

para colher as verduras submarinas.

[...]

 

Evidentes ou subentendidos, os apelos visuais rodopiam em meio às rupturas dos padrões canônicos, provocando olhares pontuais e profundos, intensificados pelas combinações sonoras, inclusive, das semelhanças e diferenças advindas de outras línguas que se fundem na composição poética:

 

No Início era a Tradução.

Im Anfang war die Übersetzung,

poderia ter escrito João

ΕΝ ΑΡΧΗ ν μετάφρασις, απόδοση,

en arché ên he metáphrasis, apódose,

performance

ou Fausto: na Infância era a Transcriação.

 

A combinação de elementos é o combustível para o sentimento dos versos, expresso na intensidade e nas acentuações, diluído na métrica, saltitando no ritmo, bailando na harmonia, flutuando na musicalidade, habitando cruzamentos da espacialidade, da sonoridade, da sintaxe e do imaginário. Afinal:

 

O texto é só

a partitura do pensamento tatuada

em tua nuca.

 

As questões sensoriais, em determinados poemas, são exasperadas por estrofes que a priori aparentam ser caóticas, mas que ao longo da leitura vão ganhando sentido e formando um corpo pulsante, fazendo com que o leitor, literalmente, se aproxime da obra:

 

[...]

esta mão deformada

tem seu próprio abismo

e cordilheira

 

mutilados pela raiz

afi ncamo-nos ao solo

compartimentados

 

são quinze andares de papéis com nomes

e fotos e dados e números dos desaparecidos

 

acessar sistema de registro de frequência para bater o ponto

ao chegar ao sair para cagar para almoçar ao voltar ao morrer

 

e no entanto mais que as formigas

mais ao sul que ao norte laboramos

 

ordena-se catalogação digitalização disponibilização

higienização armazenamento redistribuição rearquivamento

 

só a cigarra responde:

soispedaçosdumengrenagendisfuncional

soispedaçosdisfuncionaisdumengrenagemperfeita

[...]

O poeta também brinca, joga, trabalha com as possibilidades que a tecnologia permite, ao explorar as tipografias e os símbolos gráficos, ombro a ombro com os alfabetos latino, grego, sérvio, cirílico:

 

¤ domar a loucura para procriar a lou-cura ou

procriar a loucura para domar a low cure

 

ф sou cavalgador de discos, a penas

inventore de palimpsestos ruidosos que tendem ao inaudito

 

Ŋ ¿ você ainda quer tanta infância ?

 

Ђ acompanhado das ruínas e de sua irrelevância

persegue-me toda via o terror do desabamento

 

ф ¿ se eu quero tanta infância ?

¡ fôssemos nativas,

com ti, nua ríamos !

¤ Riremos, remos !

eil-os.

 

Daniel Glaydson ouve o cantar das musas e das sereias, é trovador, cordelista, rapsodo, menestrel, contador de histórias e brincante das palavras. Em Pulsão de Língua a poesia faz festa e viaja milênios através da epopeia, da ode, do épico, do contemporâneo e do popular, sem perder de vista, inclusive, a crítica social e política, presente de modo cirúrgico na tessitura de versos onde o telúrico e o feérico se encontram e se expressam de modo pulsante nas inúmeras idiossincrasias presentes na retina do poeta






 

Daniel Glaydson Ribeiro nasceu em Picos (1985). Pai de Anita, Tarsila e Bento. Professor do Instituto Federal do Piauí. Com o grupo Ausgang de Teatro, organizou o livro Almanach Muda (2016) e levou o Samba de Brecht para a Universidad de las Artes, em Havana, Cuba. Dentre as publicações recentes, estão: a plaquete “Marcescível” pela Mirada (2020); o poema “Põlinud-iná” na revista Desenredos (2020); e traduções de Paul Valéry na revista Em Tese (UFMG), com Fábio Roberto Lucas. Pulsão de língua (Mirada, 2021) será seu primeiro livro solo. Coordena o projeto de extensão “Linguagem e poesia #dendicasa”, cuja produção virtual pode ser encontrada em youtube.com/LinguagemePoesiaDendiCasa

 



Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.