Tive coragem quando acordei, crônica de Davison Souza

 por Davison Souza__





Andarilhando pelos caminhos brancos da academia, me deparei com a seguinte pergunta: “quando você teve coragem?” Imediatamente me veio à mente a fala do Emicida, ressaltando que as populações negras ao acordarem e colocarem seus corpos no mundo são extremamente corajosas. Talvez você não entenda isso, e nem a pessoa que me perguntou. Mas logo entenderá.

Eu não lembro na verdade, quando não fui corajoso. A minha experiência existencial, enquanto corpo-negro, num país racista como o Brasil, me fez um ser de coragem. E não me entenda mal, eu não estou dizendo que não tenho medo. Em todo ato de coragem que tive, eu estava com medo, meu coração palpitava - acelerado como o ritmo de um tambor -, minhas mãos frias como a noite e o suor gelado escorria pelo meu corpo como a chuva escorre pelas ruas. A coragem não implica perda do medo. Mas significa seguir, mesmo com ele.

A primeira vez em que me lembro em um ato de coragem, não fui o protagonista, mas minha mãe, ao ver, todos os dias aquela mulher-negra sempre contrariando o sistema (mesmo sem noção concreta do que era esse sistema), impondo seu corpo-pronuncia num ato de subversão, ali eu testemunhei a coragem, num ato existencial. 

Em comunhão com ela, eu vi meu pai, dentro de uma favela levantando a voz contra um Policial Militar, erguia seu corpo-cansado em defesa do seu filho (que estava sendo abordado pela polícia, um jovem de apenas 13 anos), a sua revolta frente à injustiça, se manifestou para mim como um ato de coragem, alimentou meu desejo de mudança e de justiça. Foi através do testemunho-ação que pude entender o que era coragem.

Hoje, olhando para o ontem, eu percebo de onde vem minha coragem, e entendo a frase proclamada por Emicida. Acordar, levantar, e por nosso corpo-negro no mundo é o maior ato de coragem que existe. Nesse ato anunciamos nossa (re)existência, mediante um sistema estrutural que funciona para nos exterminar, para matar nossa mente, alma e corpo, como proclama Abdias Nascimento. Ao anunciarmos nossa presença no mundo, já estamos subvertendo o sistema de supremacia branca, ao ocupar espaços nessa sociedade excludente estamos sendo pontos de ruptura (mesmo que mininos) num sistema maior.

Esse sistema é o que mata a cada 23 minutos um jovem negro, o mesmo sistema encabeçado por pessoas brancas é o que alveja um carro de uma familia negra com 80 tiros, nesse mesmo sistema um senhor é estrangulado dentro de um supermercado, nesse mesmo sistema uma criança negra é morta a tiros por uma “bala perdida”, nesse mesmo sistema a exclusão de corpos-negros dos espaços de poder e decisão é normalizada, esse mesmo sistema exclui nossos conhecimentos e saberes dentros dos espaços educativios (institucionais ou não) por meio de uma pedagogia do silêncio e naturalização. Todos esses exemplos não são casos isolados, são fios de uma mesma malha, interligados por um tecido maior, que se chama: racismo.

Ao sairmos de casa todos os dias, somos seres de coragem, pois ousamos enfrentar esse sistema secular de extermínio. Esse é o maior ato de coragem - continuarmos vivos - perante esse sistema de morte. Anunciar a vida, a vida-negra é um ato de coragem.

A Denúncia desse sistema de morte, nos aponta a perspectiva do Anúncio, como afirma Paulo Freire, anúncio de sonhos, das utopias, dos esperançar (ação). E assim como o mc Cabelinho e Bk na música reflexo: “Eu quero ver bocas sorrindo, algemas caindo e mentes se abrindo” Como afirma (a) Mar, sorrir é um ato de coragem frente a morte que é uma política de Estado.

Por isso, eu Anuncio aqui, que a cor dos que agem e ousam sambar (vida) nos fios da navalha (morte) é um movimento ancestral. Ser negro é ser de coragem. 





Davison Souza  é filho do seu José e da dona Maria, nascido na periferia de fortaleza, Pretagogo é formado em pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará, pesquisador em educação antirracista, educaçãopopular e política de cotas raciais. Atualmente cursa o Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE-UECE). É artista e ilustrador digital, formado nos “corres” da vida. Expoe sus artes na página do Instagram @pretart,em que dialoga sobre corpos negros e seus diversos atravessamentos na sociedaderacista do Brasil. É o autor do livro Cota não é esmola: as cotas raciais na UECE, que carrega o selo da editora Mirada