Dois poemas de Lisiane Forte

por Lisiane Forte__


Imagem de Stefan Keller, por Pixbay



A febre


Eu não sei quem cuidará da minha febre,
E dos meus dedos tortos,
mas ainda espero no casebre

O que deseja os meus restos mortos.

 

Toma lá, dá cá, pode aguardar;

Das migalhas de tudo que ouviu falar,

Das cicatrizes que arranjei por lá

Das memórias que trouxe para cá

 

Tudo se foi pelos ares

Nada encontrará

Nem aquela canção; pode apostar.

Não conseguirá mais cantarolar

 

Mas confesso que o medo tomou conta de mim,

E eu não quero mais ficar aqui

As recordações tristes; penduradas ali.

Meu suor escorrendo; tu viste daí

 

Deixe-me ir embora, caro senhor.

Levarei comigo tudo o que for furta-cor

 

O beija-flor, os discos do Belchior e o velho cobertor.

A febre passará, meu desertor

 

 

Publicado em Liames, Editora Premius, 2018)

 

Foto: Tim Mossholder

 

|Sobre tropeços e caminhos abertos|


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Tem tropeços que nos revelam.
Talvez todos eles  deem sentido às nossas dores.
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Houve um tempo em que eu caminhava e tropeçava em galhos de árvores no parque;
não consciente dos galhos à vista, fui saber logo dos tropeços.
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Como não olhava para o chão, tropeçava de novo.
E aprendi dessas quedas,
mas não dos caminhos que levavam a elas.
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Então, de tanto tropeçar, já cansada e relutante, lancei um olhar demorado para o chão;
e vi tantos galhos quantos caminhos abertos.
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Gritei o júbilo da visão que tive
até entender dos sentidos.
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Fiquei parada num canto, na tentativa de radiografar o cenário e não perde-lo de vista;
mas eu ainda achava que ao memorizar o território não precisaria mais olhar para o chão.
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Lembrei que no começo do caminho, alguém havia me dito:
-- Levanta essa cabeça!
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Acredito que levei a sentença ao pé da palavra e corri demais,
sem olhar para o chão,
sem descansar,
sem suturar os pés sanguinolentos.
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Desde o gozo da revelação,
"baixo a cabeça" e espio o chão
a fim de entender dos caminhos que mudam;
basta uma chuva, um vento forte ou até mesmo algumas das tantas invenções humanas, para tudo mudar
num piscar de olhos.
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Hoje, levanto a cabeça,
mas desde então espio o chão,
mesmo que na memória tenha o mapa desses caminhos todos.
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Consciente dos galhos,
tropeço menos.





Lisiane Forte é psicóloga clínica, escritora, ilustradora, fotógrafa, Colaboradora da Mirada Janela, membro efetivo da Academia Brasileira de Psicólogos Escritores, arteterapeuta, atua com expressões corporais em sua clínica artística, Clínica Instante e autora dos livros "Liames", “Zonas Abissais”, "Psicologias em Reflexão l e ll' e no prelo “Aqui e Agora | viver a vida de perto”