Eu em terceira pessoa, Rafael Silva

 

por Rafael Silva__

Foto: Ahmed Nishaath

Levanto-me com um ar cansado e um profundo desejo de ser amado. Meu corpo tenta acompanhar a alma que vaga pesada pelos cantos da minha casa à procura de alguma coisa que não sei bem o quê. Já tem dias que pairo nesse estado de espírito monótono e inquieto como se o momento presente me ardesse o corpo e dele eu precisasse me desvencilhar. Estou sem lugar, tempo algum me contém.


Dirijo-me à cozinha, que não é bem uma cozinha: um fogão mais ao fundo do quarto, uma mesa que o separa da cama e define os limites dos cômodos. Dirijo-me ao fogão e enquanto preparo um chá – sim, um chá deve me cair bem – lembro-me de outras noites aquecidas nos abraços das pessoas que amei. E pergunto-me: Onde está Antônio? Quem, agora, beija a boca de Guilherme? Como será que anda a vida para Ana? Sinto que, embora ainda tão menino, carrego o fardo de mil vidas vividas de amores incompletos e desiludidos.


Sorrio, portanto, desacreditando de mim mesmo: como pude amar tanto em tão pouco tempo? Mas não foram amores frívolos, constato preocupado, derramando em na xícara monocromática a água recém fervida. De alguma forma, sua monocromia estática espelha meu estado de espírito e eu não suporto ter que me enxergar em uma xícara. Abro meu armário, procuro alguma outra mais colorida, quem sabe, com alguma estampa engraçada, talvez. Deve haver alguma! Não encontro. Todas são brancas. Uma ou outra preta. E por que diabos eu só comprei xícaras brancas? Recuso-as. Desisto do chá. Amanhã mesmo compro outras.


Volto a vagar pela casa procurando juntar-se à minha alma. Será que se lembram de mim? Pergunto-me com uma sensação dolorida de incerteza. Quero acreditar que sim. Não posso ser o único a continuar a amar em resquícios. Amar em resquícios, repito em som alto gostando dessa expressão que me escapuliu à boca. Amar em resquícios é esse amor que sobra e que ainda dá pra se amar. Penso nessa possível definição. Por hora, serve.


Nessa sala mal iluminada por um abajur incandescente, uma escrivaninha magricela sinaliza sua presença que me é necessária. Diante dela ajusto meu corpo desviando-me dos móveis que torna esse espaço minúsculo labiríntico. Ponho-me a escrever a frase para não esquecer: Amar em resquícios é esse amor que sobra e que ainda dá pra se amar.


Nesta noite, tive um sonho quase epifânico: um edifício que se desmoronava levantando uma poeira amarelada e densa que me turvava a vista. Uma metáfora óbvia sobre esses acontecimentos internos dos últimos meses. Meses... não tinha percebido que há tanto tempo me encontro assim. Algo em mim está desmoronando: eu mesmo. Eu: essa coisa que por anos erigi sob um forte alicerce e que já não me é mais reconhecível; cujo nome, por tantos anos chamado, hoje, sem sentido soa vazio e estranho. É isso. É isso! O eu em falência. Se não sou esse eu, o que mais posso ser? Desespero-me. Tento escrever, pois aprendi que escrever ajuda nesse processo de compreender a si e alivia a angústia.


Não funciona. Quem me disse que angústia era para ser atenuada com sexo, álcool ou arte estava completamente enganado. Angústia é pra ser vivida. Compreendo. Compreendo e aceito. Aceito fatídica e irremediavelmente e rendo-me ao meu padecimento interno e espiritual. Sobre a escrivaninha, repouso meu lápis, então. Meu fiel companheiro dessas horas de breu. Desisto também de escrever. Aqui, sentado, percebo que angústia é esse estado de coisa nenhuma que não se movimenta para frente ou para trás, que não tem objetivo, apenas é. E para só ser é preciso muita fortaleza de espírito que, suspeito, não tenho. Ainda assim, deixo-me ser, despretensiosamente, afogo-me nesse mar de nada que me preenche até as bordas, mas não vaza, sem ar, sem cordas para segurar, sem Deus.


....

Ergo-me e sobre o chão gelado meus passos desenham um círculo. Giro, giro, giro. O chá me retorna às ideias. O chá deve me cair bem. Apascentar-me. Devolvo a água para a chaleira, acendo o fogo e espero, pacientemente, até as bolhas minúsculas na água reaparecerem. O relógio marca a segunda hora desse dia que ainda é noite.


Estou esperando. Mais um pouco e a água começa a se remexer.


 Agora, convulsiva dentro da chaleira parece querer romper essas paredes duras e metálicas, parece gritar por socorro, se retorcendo em seu próprio calor insuportável. E é exatamente assim que estou me sentindo. Olho para a água em ebulição e vejo-me, como outrora olhei-me firme e fundo diante do espelho e todas as minhas nuances, minha história, meus segredos se estamparam resumidos na minha cara e eu me descobri.


Não quero essa droga de bebida, e, no entanto, estou me forçando em prepará-lo. Chá... que coisa mais sem graça. Ando pela casa abraçando a xícara com as mãos, sinto as palmas esquentarem. Estão queimando. Um pouco de dor, talvez, faça-me bem. Devo persistir. Até a pele corroer? Eu vítima de mim mesmo. Insisto. Durante todos esses dias tenho buscado um choro, uma lágrima sequer, umazinha, que caia e esvazie isso do qual não suporto mais está cheio, mas as lágrimas não vieram. Estou convocando-as, agora!


Mantenho minhas mãos coladas na xícara quente, a quentura maltratando-me a pele para ver se o coração sabe que é hora chorar. De dor. De dor? E se o choro que vier for choro dessa dor da queimadura e de alguma forma não conseguir levar em seu leito essa outra dor que é de angústia? E se a dor da queimadura que é mais superficial e menos urgente que a dor de angústia, for a única a ser alcançada e acalentada com o choro? Um choro não pode chorar senão a sua dor. Não arrisco mais uma queimadura à toa.


Solto a xícara e me mantenho parado em algum lugar dessa casa mal iluminada pela incandescência do abajur. Sinto as coisas rebuliçarem. Essa angústia mais parece uma outra pessoa que me esmurra por dentro querendo romper minhas paredes duras feitas de carne - como a água fervente.  Essa outra pessoa parece sufocada, um peixe se debatendo fora d’água, um humano n’água querendo ar, mas sem morrerem. É isso! É isso! A angústia é a morte se adiando o tempo todo, mas sem deixar a vida viver. É o estado da morte em gerúndio. Estou morrendo… endo… ndo.


Sento-me novamente à escrivaninha para anotar esse lampejo de sabedoria e não o perder. Em letra cursiva e bem desenhada estou registrando essa compreensão que me é cara: Angústia é a morte se adiando o tempo todo, mas sem deixar a vida viver. É o estado da morte em gerúndio. E para afrontar essa morte em gerúndio pressiono bem forte o lápis para fincar um ponto final. Quase transpasso o papel. Sinto raiva e cedo à insistência do chá.


Mergulho meu dedo na água. Ainda está quente. Vai servir. Sachê submerso, vejo a água pouco a pouco se esverdeando e tornando-se calma. A água está quieta, receptiva, serena. Como se a água estivesse dizendo sim. A água diz sim. O líquido me molha, me esquenta e, finalmente, me apascenta. Lentamente, saboreio o chá e deixo que ele realize seu trabalho sem pressa.


Levanto-me em terceira pessoa, com um ar descansado, mas ainda com um desejo profundo de ser amado. Profundo. Não sei onde está Antônio, Guilherme ou Ana. Não sei se ainda se lembram de mim ou se ainda me têm amor. Não sei coisa alguma. Não sei bem o próximo passo. Não sei se o amor vem. Não sei se é somente dor. No entanto, respiro, aceito e rendo-me à surpresa do próximo instante.




Rafael Silva. Jovem escritor sem gênero literário fixo. Escreve o que der na telha. Se quebrar o teto e rachar as paredes: é texto na certa. Metido a cantor. E essas coisas que faço por pura necessidade e amor me definem bem mais que as oficialidades de ser psicólogo, pós-graduando e outras convencionalidades dessas aí. Do Bom Jardim, Fortaleza/Ce, estou lançando ao mundo meu primeiro livro "Escritos sobre um velho em ruínas" com Selo Mirada.