Quatro poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

 por Taciana Oliveira__

 




O mar dos meus olhos

 

Há mulheres que trazem o mar nos olhos

Não pela cor

Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos

Ficam para além do tempo

Como se a maré nunca as levasse

Da praia onde foram felizes

 

Há mulheres que trazem o mar nos olhos

pela grandeza da imensidão da alma

pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens…

Há mulheres que são maré em noites de tardes…

e calma

 


Evohé Bakkhos

 

 

Evohé deus que nos deste

A vida e o vinho

E nele os homens encontraram

O sabor do sol e da resina

E uma consciência múltipla e divina.

 


do livro “Coral e outros poemas” (Companhia das Letras)

 

 

 

Reza da manhã de maio

 

Senhor, dai-me a inocência dos animais

Para que eu possa beber nesta manhã

A harmonia e a força das coisas naturais.

 

Apagai a máscara vazia e vã

De humanidade,

Apagai a vaidade,

Para que eu me perca e me dissolva

Na perfeição da manhã

E para que o vento me devolva

A parte de mim que vive

À beira dum jardim que só eu tive.

 

 

do livro “Coral e outros poemas” (Companhia das Letras)

 

 

Nesta hora

 

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda

Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo

 

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio

E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

 

Meia verdade é como habitar meio quarto

Ganhar meio salário

Como só ter direito

A metade da vida

 

O demagogo diz da verdade a metade

E o resto joga com habilidade

Porque pensa que o povo só pensa metade

Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

 

A verdade não é uma especialidade

Para especializados clérigos letrados

 

Não basta gritar povo é preciso expor

Partir do olhar da mão e da razão

Partir da limpidez do elementar

 

Como quem parte do sol do mar do ar

Como quem parte da terra onde os homens estão

 

Para construir o canto do terrestre

– Sob o ausente olhar silente de atenção –

 

Para construir a festa do terrestre

Na nudez de alegria que nos veste



do livro “Coral e outros poemas” (Companhia das Letras)

 

 




Sophia de Mello Breyner Andresen
- Nasceu em 1919, no Porto, Portugal. Sua obra, que inclui poemas, contos, livros infantis e ensaios, recebeu inúmeros prêmios, como o Camões (1999) e o Reina Sofía (2004). Toda sua poesia foi reunida em Portugal no volume Obra poética (Assírio & Alvim, 2015). Faleceu em 2004. Fonte: Companhia das Letras.





 

 

Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…