Na poesia cabe tudo o que não tem lugar | Marcela Maria Azevedo

 por Taciana Oliveira__




Uma entrevista com a autora de “Todas as mães são tiranossauras”, Marcela Maria Azevedo


1 – O seu primeiro livro compartilha não apenas de uma estruturação poética vigorosa, é um mergulho na ancestralidade feminina em um delicado percurso biográfico. “Todas as mães são tiranossauras”, Editora Urutau, é também uma obra entre o luto e a memória?


 Sim. E eu não saberia descrever melhor. É curioso pensar como o processo de luto, no atravessamento que ele exige, é também um trabalho de resgate e reconstrução da memória. A minha mãe faleceu quando eu tinha apenas cinco anos de idade, uma época tão antiga e desde sempre tão longínqua em minha vida, pelo traumático que ela carrega, que eu já quase não tenho mais lembranças. Acho que é desse mesmo processo que vem também o trabalho com a fotografia que aparece em meu livro, porque antes mesmo de eu colocar meu corpo na cena das imagens, pensar as fotos que o compõe, fiz um mergulho profundo nas fotografias da minha mãe, na tentativa de resgatar esse instante para sempre perdido e irrecuperável que uma fotografia representa, mas que é também um instante de vida eternizado. É como se esse trabalho com a memória me revelasse a potência do poético, em construir um retalho, juntar os fragmentos, dar lugar a essa perda e construir com esse vazio. A poesia permite coabitar a morte e a vida: eis a sua mágica.

     


 2 - O documentarista Carlos Nader afirma que o verso do poema “W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBER”Y , de  Wally Salomão, “ A memória é uma ilha de edição”,  vale não apenas para as lembranças daquilo que vivemos, mas também do que sonhamos”. Na concepção do seu “Todas as mães são tiranossauras” é possível se situar nesta afirmação? Pode explicar pra  gente?


Acho que sim. E isso tem muito do que falei anteriormente. Se a gente pensar que nossa vida é um movimento contínuo, onde várias coisas e acontecimentos – pela sua própria desimportância – perdem-se ou não se fixam, a memória se realizaria justamente por ser esse lugar onde algumas coisas se guardam – e quase sempre em detrimento de nossas próprias escolhas. Pequenos pontos, pequenos acontecimentos, passagens, afetos, que são retirados de sua sucessão cronológica e colocado em relação com um mundo outro que já está ali.

É bonito pensar o preparo e a edição de um filme, por exemplo, e sobre como a partir de um fotograma, a unidade mínima de uma película, é possível construir uma ilusão de movimento. Um fotograma é uma imagem parada, morta, uma pausa no transcurso de um acontecimento, mas quando é sucedido por outro e outro e outro, e a depender do que vem depois, tem-se a impressão de que aquilo é contínuo, como o próprio acontecer de uma vida. O genial da metáfora é situar que entre essa unidade mínima e o movimento contínuo – que é um filme, uma vida – há uma disjunção, uma descontinuidade. Imagino que é assim a memória, essa ilha onde se guardam as descontinuidades, os pontos soltos, os acontecimentos distantes, todos os retalhos miúdos de uma vida que a gente faz o esforço de conectar pra poder contar nossa história, nossa narrativa. Penso que é aí também que habita o que é próprio ao trabalho artístico, pois nesse esforço de construir uma continuidade para o descontínuo, o que fazemos é não apenas edição, mas também invenção.

 

3 – É perceptível a intertextualidade nos teus poemas, como no "O que me ensina Germaine Krull sobre o meu nu feminino".  Quem você citaria como referência para tua formação?


 Eu acho que tanta gente. Na construção de uma escrita, de um estilo, precisei me apoiar em tantas vozes pra dar lugar e sentido ao que era meu. Mas curiosamente quem me vem de imediato como referência não é nenhuma poeta ou fotógrafa, mas o Roland Barthes. Acho que recentemente ele foi meu grande companheiro nas reflexões sobre a morte, a mãe, a fotografia, o trabalho biográfico com a escrita, a escrita de uma vida e aquilo que não se escreve.

Não tenho como deixar de citar também o Max Martins, meu poeta favorito. A Marguerite Duras, que eu leio e releio incansavelmente. Entre os fotógrafos a Germaine Krull, a Francesca Woodman, o Bresson. Eu colocaria nessa lista também a cineasta Agnès Varda, com o jeito tão sutil de fazer filme e fazer memória. O Cortázar. O Drummond. A Adélia Prado, que é a única poeta que já me visitou em meus sonhos.

 

AUTORRETRATO/Fotografia: Renato Salgado . Composição: Marcela Maria Azevedo

4 – A psicanalista Silvia Leonor Alonso, em seu artigo para revista Cult, ‘O tempo que passa e o tempo que não passa', escreve: "O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um 'outro tempo', o tempo da 'mistura dos tempos', o tempo do 'só depois', o 'tempo da ressignificação'."  No seu livro você descortina na memória um percurso de sensações, uma arqueologia dos sentidos onde se fazem presente o não pertencimento e a ausência materna. De que forma essas experiências te ajudaram a construir sua percepção do tempo presente frente ao cenário caótico do nosso país?

 

 É engraçado, mas ao longo da pandemia, ao longo dos últimos e sofríveis anos para nós brasileiros, eu tenho refletido tanto sobre o tempo. Sobre a forma como ele, apesar de tentarmos fazê-lo encaixar numa cronologia mensurada pelo calendário, pelos relógios, é absolutamente avesso a isso. O tempo é justamente o que nos escapa a cada momento, pois a cada tentativa de apreendê-lo, ele já se foi. O fato desse livro, que já se escrevia há tantos anos em mim, ter nascido exatamente nesse momento tão crítico e caótico, me fala de um duplo movimento: de um lado o luto diário, demorado e arrastado que o brasil nos obriga a viver, e que me faz reexperimentar com uma urgência inédita o luto pela morte precoce da minha mãe – como se a dor da morte, essa das 537 mil famílias que o genocídio nos fez descobrir, eu conhecesse com alguma intimidade; e de outro lado, talvez pela minha própria intimidade com a morte, essa que foi cedo demais pra mim, vem esse grito, essa resistência que o livro representa, essa insistência que a poesia pede pela vida.      

Então eu diria que o processo de recuperação, construção e edição da memória, esse que converge com a produção do meu livro, não é jamais alheio ao mundo. A vida presente me faz tocar de modos distintos no meu passado, assim como o meu passado, as marcas que ele me deixou, me prepara de um jeito muito singular para um futuro – seja pra sonhar, ou pra resistir.  Assim, o que talvez seja mais valioso de pontuar é que o Todas as mães são tiranossauras, ainda que tenha como núcleo a morte primeva da minha mãe, também fala da construção de uma mulher, de uma mulher nesse tempo presente, nessa atual configuração de mundo, nesse Brasil extremamente frágil e tão apto a abrir tantas cicatrizes em nós.

 


5 – Você se define como “uma errante na vida e na poesia”. Conta um pouco da tua trajetória. Até que ponto essa errância influenciou na sua formação como poeta, psicanalista e mulher?


Essa pergunta me fez lembrar do poema de sete faces do Drummond: “vai carlos! Ser gauche na vida”. Eu acho tão simbólico pensar que ele, o Drummond, que foi também um funcionário público, tão preparado para o trabalho com as burocracias, um dia se vestiu de anjo e disse a si mesmo, “vai carlos! ser gauche na vida”, nessa vida aparentemente tão certa, tão reta. Acho que desde cedo esse verso me acompanha e me ensina o parentesco entre a poesia e a errância, porque eu acho que ela nasce mesmo nos desvios, no incerto. Não está nos caminhos óbvios, retilíneos, mas num jeito meio torto de olhar e perceber como essa disposição de mundo por outros ângulos nos mostra perspectivas bonitas do que a princípio era só mesmo.

E na minha trajetória isso se incorpora de um jeito muito particular, porque até os cinco anos de idade, ano em que a minha mãe morre, eu morei em muitos lugares: nasci em Petrolina, morei lá por dois meses que já não lembro, depois fui para a Bahia, voltei pra Pernambuco, fomos pro interior de São Paulo e logo após a morte da minha mãe mudamos pra Belém, onde fiquei por quase toda minha vida. Saí de lá adulta, pra estudar e pesquisar, fui pro Rio de Janeiro e hoje moro em São Paulo. E sigo com uma sensação insistente de não saber exatamente qual o meu lugar nesse mundo, onde fica o cantinho que eu posso chamar de lar, ou qual o território que vibra mais em meu corpo. Isso, certamente, faz eco nos meus poemas. Porque na poesia cabe tudo o que não tem lugar, os jeitos gauches de experimentar o mundo – e Drummond nos ensina que isso não tem nada a ver com o que prescreve as aparências, mas sim com a própria sensação singular de deslocamento, de diferença. A gente se inventa na poesia com as errâncias de uma vida.

 




Marcela Maria Azevedo é uma errante – na vida e na poesia. Nasceu num 29 de fevereiro – o dia mais raro do mundo – na cidade Petrolina-PE e, talvez por isso, por carregar a raridade do mundo na carne, tenha feito sua trajetória atravessando o país de leste a oeste, de norte a sul. É também pesquisadora das palavras, faz doutorado em teoria psicanalítica, onde estuda a obra do poeta Max Martins, seu favorito, o que a garante também ser uma pesquisadora do amor. Seu primeiro livro ~ todas as mães são tiranossauras ~ será lançado em 2021 pela editora urutau.

 








Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem