por João Gomes__
O carioca André
Luiz Pinto, em conversa com a revista Mirada à seção Falatório, nos fala de
sua trajetória poética em torno de mais de 30 anos dedicados à poesia.
1- André, seu livro "Balanço"
reúne 30 anos de sua produção poética. Como foi pensada a organização dos
poemas? Algum poema ficou de fora?
“Balanço” é uma reunião de cento e
um poemas (são cem poemas éditos e um poema inédito) em que eu revisito os
trinta anos que completei de vida literária. Não se trata de uma reunião de
todos os livros (nove ao todo); mas de um conjunto de poemas que eu considerava
significativo entre os tantos poemas que escrevi ao longo da vida.
Por isso a data inicial ter sido 1990: em
vez de adotar como ponto de partida a data de publicação do primeiro livro,
optei pela data em que o poema mais antigo fora escrito. O poema no caso era “Justificativa”
(“Eu plagio/ porque não inventaram/ coisa melhor”), escrito aos quinze anos, depois
publicado em meu primeiro livro, “Flor à margem”, em 1999.
Essa decisão partiu de uma longa
discussão. Tenho um amigo que não concordou com essa minha escolha; considerava
que manter a tradição de adotar a data de publicação do primeiro livro seria melhor.
Eu mesmo, não nego, cheguei a titubear, mas foi Eduardo Lacerda, meu
editor, que me convenceu de que a escolha original era a certa. “Balanço”
não é uma reunião dos meus livros, antes, é uma revisita a meus poemas. Visita,
aliás, não tão simples. Houve momentos de alegria, satisfação e deleite, mas
também não foram poucas as horas em que a consciência agiu sobre alguns poemas deixando-os
parcialmente modificados.
2 - “Balanço” é como um aperto de mão quando você diz:
"Prazer esse sou eu"? Como é contar três décadas de uma
produção literária que dialoga com o social, a filosofia e a
metalinguagem?
Fico feliz que “Balanço” tenha
dado essa impressão, pois é essa impressão que eu sempre quis que meus leitores
tivessem dos meus livros: a de alguém que você nunca viu e que lhe convida a
sentar. Como na canção “Saudade dos aviões da Panair (conversando no bar)”,
em que o mundo gira ao redor de uma mesa. Nesse sentido, em relação ao que
escrevo, há, implícita e explicitamente, conotações de ordem política e social,
reflexões sobre o fazer poético, todas liquidificadas. É como as câmeras de um
avião à beira do colapso, em looping: como eu não vi antes que essas coisas já estavam
misturadas?
3 - Conta um pouco de sua infância no Rio de
Janeiro até a docência da filosofia? Sua escrita é autobiográfica por alguma
razão política?
Fui um garoto do subúrbio carioca. Até os
vinte, vivi no Cachambi. O Cachambi é um bairro dividido em duas partes, numa
área distante das favelas locais e em outra mergulhada nelas. Meu pai comprou
um apartamento na parte desprivilegiada do bairro, tanto que minha educação
básica foi em parte na Escola Municipal do Rio de Janeiro, no morro do
Jacarezinho. Depois meu pai apertou o cinto e colocou os três filhos numa
escola particular local. Com o agravamento da economia nos anos oitenta, nossa
família chegou nos anos noventa financeiramente depauperada, somada à
aposentadoria de meu pai. Eu tinha quinze anos. O que meu pai tinha para gastar
com nosso ensino, já tinha gastado ao longo de sete anos. A única possibilidade
era cursar a universidade pública. Nessa época, já pensava em ser escritor, mas
foi minha mãe a primeira a dizer: “Escritor? Esquece, André”. Depois descobri a
duras penas que ela tinha razão. Mas, enfim, precisava escolher uma profissão
que me acorrentasse para sempre. Acabei escolhendo a faculdade de enfermagem. A
profissão de enfermeiro oferecia amplo emprego na época. E lá cursei no bairro
da Urca o curso de enfermagem e obstetrícia da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (Uni-Rio). Cheguei a trabalhar por dois anos na área; contudo,
pouco depois do casamento, decidi com Aline, minha esposa na época, que o
melhor era largar a profissão e tentar o que sempre sonhei. Aline foi a
primeira pessoa que me apoiou naquela empreitada. É uma dívida que tenho com
ela por toda a vida.
Foi um período duro. Eu era objeto de
chacota; todos, exceto Aline, pressionaram-me para retomar “a vida produtiva” e
não me lançar numa aventura. Meus parentes e os dela me caluniavam. Largar a enfermagem,
uma profissão proletária, esperável para um homem como eu, era tido quase como uma
traição. Só Aline me apoiou. Depois, com a publicação dos meus livros e ingresso
na faculdade de Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
cursando o mestrado e o doutorado, tornando-me professor de uma universidade
particular, depois de uma escola pública e, hoje, também de uma escola técnica,
Aline teve, anos antes de morrer, a alegria de saber que sua aposta não foi um
devaneio.
Respondendo à segunda pergunta, minha
escrita não é autobiográfica por razões políticas; antes, ela é política por
ser autobiográfica. Isso está registrado no título do meu primeiro livro, Flor à margem, que, mais do que um
título, é uma autodefinição que reverberaria também no título de outros livros:
Ao léu, Mas valia, Migalha. É o
registro da vida de alguém que não pode ser descolada de todos e de tudo que
gira ao redor.
4 - Alguns de seus livros tiveram
apresentações escritas por críticos e poetas. De alguma maneira facilita para o
leitor o enigma que pode ser para alguns a sua escrita? Com uma escrita
coloquial, em algum momento você se considera hermético?
Acho que um dos papéis da crítica é sem
dúvida o esclarecimento de uma obra, do percurso de um autor, sua inserção no
seio da tradição. Nesse ponto, meus livros sempre foram bem apreciados pela
crítica especializada: Alberto Pucheu, Carlito Azevedo, Manoel
da Costa Pinto, Antonio Carlos Secchin, Eduardo Guerreiro, Marcelo
Diniz, Jardel Dias Cavalcanti, estão entre os que prefaciaram ou
resenharam meus livros. Retomando sua pergunta, é evidente que o crítico facilita
o leitor dando alguma chave. Mas entenda, o hermetismo antevisto pelo leitor é
na maioria das vezes desconfiança e comodismo. E, de fato, a frase de
compreensão mais óbvia pode conter um enorme segredo. Agora, se eu me considero
hermético, sim; mas o hermetismo é mais um estranhamento do que uma linguagem
cifrada, ainda que inicialmente (particularmente no livro “Primeiro de abril”),
eu tenha ousado numa escrita de fato hermética.
5 - Alberto Pucheu, também poeta, professor e
carioca, filmou e dirigiu o documentário "André Luiz Pinto, prazer esse
sou eu" (2019), onde você afirma: "Eu vivo porque sou poeta, sou
poeta porque eu vivo." A
relação do audiovisual com a literatura possibilita maior alcance de leitores
para sua obra?
Acredito que obtendo outros veículos, o
acesso a meu trabalho como escritor só aumente. É o que torço que aconteça.
Foram na verdade dois documentários que Pucheu fez, um sobre minha
poesia, a partir de um poema específico, “Prazer, esse sou” e, em
consequência dele, o documentário “Autobiografias poético-políticas”. Além do
mais, venho escrevendo letras e tendo alguns poemas musicados por Mikael
Monassa, um compositor jovem e talentoso. Nesse sentido, sou e estou aberto
a todos os ventos. Em relação à frase, ela é a mais pura verdade, não me vejo
em outro ofício se não o de poeta, ainda que a atividade de poeta esteja mais
para um vício.
6 - No seu poema "Nós, os dinossauros",
você escreve: "O melhor está para ser consumido / O pior já foi
confirmado." Não deixando nada de fora, sua poesia essencialmente
dialoga com a ironia?
O poema em questão é fruto de uma ideia
que me perseguiu por muitos anos: a crença de que a poesia, não só a minha, mas
toda literatura, tinha os dias contados. De que, enfim, éramos fiéis de uma
religião em colapso. Em relação à ironia, minha poesia é irônica em vários
momentos. O humor é aqui cláusula necessária para lidar com as frases sarcásticas
que atravessam o que eu escrevo. Por muito tempo, não me achava tão sarcástico,
negativo no que escrevia. Foi o longo ensaio de Pucheu que me deu essa
chave quando num parágrafo ele catalogou as frases de péssima estima que tinha
por mim. Fiquei chocado. A vontade era pedir desculpa a cada um que me leu. E
ri. Acho que para o leitor essa lida seca, sem concessões, e sem um mínimo de
humor, seria intragável.
7 - Em seu poema "Migalha",
há o relato de um pedido: um poeta é cortado em versos espalhados na caixa
d'água de um prédio abandonado, que me faz lembrar o final do filme
pernambucano A Febre do Rato (2011),
onde um poeta é reprimido e sacudido pela polícia nas águas do rio Capibaribe.
Como é "viver para e pela poesia", como escreveu Diana Junkes
no prefácio de Balanço?
Não é propriamente uma escolha, como
comer bolo de chocolate ou laranja. É mais uma orientação, quando se descobre
paulatinamente quem é. E essas descobertas essenciais da vida sempre são acompanhadas
de dor, tanto de quem se descobre quanto dos que testemunham essa descoberta.
Eu não consigo me imaginar fazendo outra coisa senão poesia. E essa escolha
teve seu preço. Para começar, a poesia, apesar de exigir um conjunto de
instrumentos absolutamente democratizados, que é saber falar, ler e escrever,
é, ao lado das artes plásticas, a mais elitista. Não faz uma década que a gente
vem assistindo ingresso maior de poetas advindos de camadas desfavoráveis no
mercado literário. Mas essa é uma situação ainda recente, e eu fui se não o
primeiro, um dos primeiros a não abrir mão e a até se nutrir dessa origem.
8 - Sua família aparece com frequência em
seus poemas. Há o André filho, o André pai ("A poesia/ meu filho/ é
feita de coisas/ simples.") e que também é professor. No passar dos
anos, estas funções colaboraram de alguma forma com a escrita de seus
versos?
Essas são condições que contribuíram e contribuem
o tempo todo na minha escrita, não só oferecendo temas para o que escrevo, como
interferindo diretamente na estrutura do poema. Depois do mergulho no
hermetismo em Primeiro de Abril (2004),
os livros publicados nos anos seguintes “Ao
léu” (2007) e “Terno Novo” (2012),
o que me moveu foi a busca por uma clareza maior no que escrevia. No entanto,
buscar a clareza era uma prerrogativa na poesia brasileira desde João Cabral.
Pareceu-me mais importante que me firmar na clareza, buscar o simples. Se a
clareza pode ser de caráter apenas estético, na simplicidade estava em jogo um ethos inerente à própria escrita, para
começar, do escritor para com os leitores. Como ser simples e não ser ingênuo?
É o que moveu estilisticamente nos livros “Nós,
os dinossauros” (2016), “Mas valia” (2016)
e “Migalha” (2019). Mesmo a exigência
de clareza pode ser autoritária, mas a simplicidade talvez não. Foi o que tentei
desde 2013: a busca por uma comunicação total via uma empatia que pessoalmente
não desfruto.
9 - Na última página do livro, como é comum
encontrarmos nas publicações da editora Patuá, há uma explicação sobre qual
seria o título original da obra: "Aos cuidados de Platão".
Como um poema, na nota final você revela: "Fica o que segue, o balanço
do primeiro terço do que pretendo escrever em vida na esperança de que daqui há
vinte anos saia o balanço de outro terço." Com qual frequência você
trabalha na sua escrita?
O título do livro seria “Aos cuidados de Platão”, mas acabei substituindo-o por “Balanço”. A ideia era ser uma antologia definitiva. Meu último livro, o derradeiro. Dali em diante eu faria outra coisa, sei lá, outro doutorado, dá sequencia aos livros teóricos que nunca publiquei. Na verdade, a antologia seria meu pedido de desculpas de ser a ovelha negra da família, meu pedido de clemência para retornar à Politeia. Mas a antologia acabou ganhando outro contorno e, ao invés de finalizar a carreira, tornou-se a promessa de outro balanço, com sorte, nos próximos vinte anos. Como se vê, meu pessimismo saiu pela culatra. Sobre a frequência com que escrevo, o que eu queria dizer é que penso em poesia o tempo todo. A frequência varia um pouco, às vezes levo de duas a três semanas para escrever um poema, outras vezes, escrevo um a três poemas de uma vez. Já teve poemas que levei cinco minutos para escrever, como foi o caso de “Prazer, esse sou eu”, outros, um ano, como foi o poema “Em Família” e outros, oito anos, como foi com “Isto”. É o que acontece com todo mundo; agora, pensar em poesia, é uma obsessão.
10 - André, como é lançar um livro em um ano
cujos lançamentos são apenas virtuais? A quarentena/pandemia tem lhe inspirado
em algum sentido e quais seus próximos projetos?
Os lançamentos virtuais são um mal
necessário. É inegável a diferença entre lançar um livro, por exemplo, numa
livraria, e esses novos esquemas em que não saímos de casa. Cheguei a pensar
que com isso ninguém se interessaria mais em comprar ou participar de
lançamentos de um autor desconhecido como eu, mas, felizmente, para surpresa
minha, o interesse permaneceu e até ampliou apesar da quarentena. Não acho
sinceramente que a quarentena nos afastou, acho que nos aproximou em muito,
mostrando o quanto perdemos. Creio que depois da pandemia, vai haver um boom
nos eventos literários, as pessoas vão querer reafirmar a vida, o que é bem
diferente da irresponsabilidade e do negacionismo que assistimos. Meu único
temor é que, com o avanço e permanência de governos conservadores e
autoritários, haja também um retrocesso na produção literária nesse sentido. Os
escritores e artistas estão longe de ser, em sua ampla maioria, altruístas e revolucionários.
Seguem, como qualquer pessoa, para onde o vento sopra. Como Platão observou, os
poetas não possuem nenhuma excelência moral comparado aos demais. Basta dar uma
olhada em como são feitos os omeletes das academias e dos concursos literários.
Em relação a meus projetos pessoais, eu já tenho um livro inédito de poemas cujo
título será “O guru”, que é também nome do poema longo que o encabeça. Mas
falar desse livro já é outra conversa...
André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975, Rio. Doutor em Filosofia pela UERJ, leciona na FAETEC e SEEDUC-RJ. Casado com Cristina da Silva Melo, é pai de Tales Melo da Rocha.
João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor,
editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta.
Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de
poesia.