por Luiz Henrique Gurgel__
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Foto de Geoffroy Hauwen na Unsplash |
Para o Du
O interfone tocou e a voz sempre afetuosa da moça informa que há uma…
Não conclui a frase, se corrige e diz que eu precisava buscar algo na recepção. Os seis andares de elevador foram longos.
O rapaz uniformizado segurava uma sacola com estampa de lírios brancos. Mal olho para ela. O mensageiro da agonia pede que eu assine o protocolo da entrega, confirmando o recebimento das cinzas do meu ente querido. Passa a urna embrulhadinha para as minhas mãos e diz “meus sentimentos”. Fico perdido, sem saber o que fazer, se dou gorjeta, se apenas agradeço, ou o abraço e choro no ombro dele.
Volto ao elevador, nos braços a sacola com a caixinha sóbria de madeira azul que condensa os restos de alguém que você abraçou, beijou, conversou, brigou. Penso de novo na estranha naturalidade que é tocar o interfone, descer e uma pessoa vir entregar restos mortais de outra pessoa. Deve haver um treinamento para isso. Fiquei pensando que ele poderia me dizer: “chegaram as cinzas do…”, como poderia ter dito “chegou seu celular da Shopee”, “chegou o vestido do Mercado Livre…”.
Não me acostumo aos tempos atuais, com o jeito como o mundo contemporâneo lida com essas praticidades. “O corpo será enterrado ou cremado, senhor? Se cremado, nós enviamos as cinzas em até 8 dias úteis”. E aí, você e sua família decidem se guardam, enterram, distribuem no jardim, lançam de helicóptero, jogam no mar…
A sensação é de que moro no 500º andar. O pensamento dá voltas. Por mais materialista que se seja, por mais que ali nas suas mãos estejam os restos de um ser que não é mais, restos de um corpo, por mais que queiram dividir corpo e alma — algo que agora não faz muito sentido para mim — tudo continua muito estranho. Na subida interminável, me sinto como aquele sujeito tímido que se constrange com outros passageiros no elevador. Olho para o teto, para baixo, para os botões, para as luzes dos andares que se sucediam. Não olho para a caixinha nos meus braços. Acho que entendi o que é sentir uma imobilidade feita de inquietude. Será que tinha algum odor? Ameacei levar a cabeça e o nariz para próximo dela, desisti. O cheiro que eu queria era o do meu ente querido, o cheiro que eu tinha quando o abraçava. Era um sujeito que se perfumava, tinha certa vaidade, se vestia bem, gostava de perfumes e cremes para a pele.
Talvez essa crônica funcionasse melhor num dia de Finados, por mais cotidiana e corriqueira que seja a morte. Com toda objetividade que se queira dar ao assunto, a perplexidade continua. Meu ente querido não existe mais, ou melhor, existe apenas o que sobrou dele naquela caixinha azul. Fora o que é intangível, que está no ar e na minha memória. Há ausência, o vazio, e os espaços que ele ocupava e em que eu costumava vê-lo, não são mais os mesmos. Seus objetos o presentificam, é verdade, há fotos, roupas, livros, ele está ali de alguma maneira, ainda que falte o que preenche tudo isso, o corpo, a voz, o cheiro, o seu silêncio.
Olho para a embalagem sobre a mesa da sala e o mistério continua. Ele tinha quase 1,80 m e agora está contido numa caixinha de 20x30cm. Quem viveu essa experiência — que tento transformar em palavras — deve entender minha confusão mental.
Cinzas devem ser o elemento mais comum a todos os seres e coisas. Tudo se transforma nelas. E, de repente, eu, que sempre desprezei rituais e que gosto das coisas diretas, nuas e cruas, preto no branco, sinto falta de um rito e lembro do amigo que sempre dizia: a humanidade precisa retomar seus rituais.
Nota pitoresca. Diz o ditado, coincidências não existem. Pois não é que no momento em que fui buscar as cinzas na portaria, eu vestia o mesmo casaco que eu tinha usado no velório? E outros tantos dias antes disso, também o havia usado quando fui assistir a um monólogo sobre Fernando Pessoa em que o ator distribuía à plateia versos do poeta? E não é que ele me deu uns versos que falam justamente de saudades? E não é que eles estavam aqui no meu bolso justamente nesse instante em que vou buscar as cinzas?
“Saudades! Tenho-as até do que me foi nada, por uma angústia da fuga do tempo e uma doença do mistério da vida”.
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