por Rejane Gonçalves___
Impressões sobre Desaboios
Cá
estou eu, envolvida com meu pensar, depois de mais uma das tantas leituras que
fiz do seu livro Desaboios. O prazer
do aprendizado, da captura das palavras em suas vestes e nudez me acompanhou em
todas elas. Isso, no entanto, não impediu o surgimento de lutas e desassossegos
entre visão e audição, sentidos meus, que independentes de mim, alheios ao meu
comando e bom senso, se engalfinharam em busca de uma sonhada primazia. Ver,
ouvir – precisava desses verbos em toda a sua plenitude para desaguar na mente
sensações cristalinas. Pois não é que o caso se deu que as tais palavras mal
acabavam de ser vistas, enxergadas, claramente percebidas, invadiam-me os
ouvidos uns sons, uns ritmos, tanta música, não só naquilo que carrega em si
(tem disso tudo) cada palavra, mas num compasso estereofônico, desmesurado. Ou
bem eu via, ou bem eu ouvia. Tapei os ouvidos, não com cera porque desdenho da
covardia de Ulisses, sosseguei-os, a bem dizer, enquanto dos olhos tirava todas
as tramelas, arregalando-os feito duas grandes janelas; dos ouvidos abri as
comportas, destampei os entraves e esperei, em guarda, o alvoroço. Houve, de
parte a parte, algum tíbio resmungo, que devido aos ajustes das percepções e ao
respeito devotado a cada um desses meus sentidos briguentos, logo cessou e
passaram os dois a me servir na justa medida, como se nunca houvesse a inveja
provocado tais desentendimentos. Deu-se então que eu pude ver/ouvir/perceber
tudo o que compunha a maravilha das palavras/cantigas. Observei (delas) o
feitio, o movimento, a quietude, o grito, o sussurro, o comprimido lamento,
também o esticar, o encolher da linha para tecer o fio, a cadência da zoada: maraca,
maracá, maracajá – ave palavra voa e vai à toa/ toada que vai e
vem numa boa. Até proust me apareceu ao pé da escada, perdido,
todo envolto em pensamentos compulsivos, por não atinar no porquê de não se
repetir nunca a ocupação do lugar pelas seis palavras que terminam, cada uma,
de cada vez, os trinta e seis versos do poema Solidão. Seu proust
se afobe não, toda peleja é dolorosa, conquanto deliciosa se dá resultado bom,
prazeroso, macio mas não meloso. Não quis, pois, buscar atalhos,
nem tampouco me apressar, valendo-me de célere condução, caminho se faz a
pé; quase fiz como Cervantes: Caro colega me ajude/ eu não consigo escrever.
Muito desaforo seria. Cervantes é homem, eu sou mulher, mesmo no tão
difícil, não é do meu feitio desistir; e fui, pulando que nem caçote,
entrevi em cada pulo o segredo das veredas, o palpitar dos abismos, como fazer
para unir olho e ouvido, mente e espírito; no propósito firme de acertar, abri
portas e janelas, acendi luzes, tochas e velas, quem enche a casa de
sol/ já não viaja no medo. Pois não é que se deu o caso que eu deitada,
apascentada, feito gado minado e mimado por canto doce, lânguido e vicioso,
pus-me de pé, invadida por um canto altaneiro, um palavreado robusto e
sorrateiro que prolongou-se num aboio, sem ser isso, nem trinado de pássaro
era, nem ganido, nem cicio, nem gemido, era antes combinação subversiva de
olho, ouvido, mente, corpo e espírito, só lhe cabia o nome de desaboio que
abriga o inventivo; daí vi/ ouvi/ percebi do fio entretecido, da teia, mandala
tão bem ornada: Cesse tudo o que a musa antiga chora/ que um canto
mais gaiato se alevanta.
Olinda
23 de julho de 2021
Livro de Pedro Américo de
Farias. Guaratinguetá (SP): Editora Penalux, 2020.
Para comprar: clique aqui
Pedro Américo de Farias é pernambucano, mora em São João del Rei – MG. Licenciado em Letras, escreve poesia e prosa crítica e ficcional. Foi gestor na Fundação de Cultura Cidade do Recife, onde criou, entre outros, o projeto do festival A Letra e a Voz.
Rejane Gonçalves é escritora pernambucana, vive em Olinda. Com formação em Letras, publicou alguns de seus contos em coletâneas. Em 2005, foi premiada no Concurso Osman Lins de Contos, da Prefeitura do Recife. Publicou: Escrevo para dinossauros (2016) e Estreitas amplidões (2019), ambos de contos, editados pela Confraria do Vento e semifinalistas do Prêmio Oceanos.