Olho d’água, espelho d’alma, Isabela Sancho

 

por Katia Marchese__





A orelha é essa namoradeira que se põe na janela a escutar histórias.


A leitura do livro Olho d’água, espelho d’alma, prêmio Literatura e Fechadura 2019 e publicado pela editora Folheando em 2020 da poeta Isabela Sancho, foi para mim uma intrigante experiência de colocar os ouvidos à disposição dos olhos.


Na janela-livro auscultei as vozes, as pulsações e os silêncios desta saga em forma de poesia. Durante a audição me deparei com os cantos poéticos que Isabela constrói em versos livres para contar sua epopeia moderna. Os cantos se desdobram em acontecimentos entrelaçados. Os versos, livre de esquemas métricos, trazem na composição das palavras uma interessante musicalidade de jogos sonoros.


A divisão do livro em sessões é marcada por cores prismáticas, verde-turvo, azul-noturno, branco catarata, preto-absoluto e outras cores, anunciando como um arauto cada capítulo desta viagem poética.    No universo contido do globo ocular de Isabela Sancho há uma lupa que deseja diminuir, deformar os prismas pois quer as revelações do pequeno e do minúsculo sentido das coisas.


A poeta neste livro nos conta a história de um olho-corpo que atravessa o mundo das águas da vida. O eu lírico esmiúça a experencia amorosa, mergulha em diferentes prismas que o foco lhe proporciona, convidando para as visões dos poemas-prismas imagéticos.

 

...nas algas superficiais.

Tiras morosas

se espreguiçam alongam

a lentidão de uma sedução.

 

Ouvidos tampados

duas rolhas

pressão abrupta.

O estampido do silêncio

vibra

uma frequência surda.

Dois goles

dois golpes garganta adentro

descem-me pontudos

afobados duros

princípios de afogamento.


Este olho-corpo em ação, experimenta as afecções (que todo corpo provoca em outro corpo, como nos diz Deleuze) no encontro afetivo. A cada aproximação (recomendo boa lupa), mergulhamos em mares, lagos, poças, areias que ondulam, versos que cobrem e descobrem a natureza dos desejos. Os poemas desenham processos de transfiguração e regeneração, são uma sequência de rituais de passagens.


Abraço meus joelhos

faço-me pedra.

Comprimida

forço um contrapeso

mas a correnteza

resoluta alheia

me desloca me dribla.

Reluto recaio

em viravolta

avante

sempre acima


Os poemas possuem extensão controlada e são marcados pela concisão, narram a história de alguém que se abriu para suas águas de dentro e encontrou os efeitos do amor na sua carne, pulmões e olhos. Quantas peles precisam ser trocadas para que desvistamos o mito do amor romântico? Quantas mulheres precisam morrer (há várias mortes em vida) ao longo do caminho?


Aqui meus olhos de nada servem

abertos expostos

ao furo das agulhas.

 

Respira fundo

água adormecida na manhã.

Nado no enlace das termas

repouso nos seus lençóis

recobrindo por inteiro

volumoso silêncio

nunca que nunca

me dará pé.

 

Isabela arrisca respostas e conhece bem os jogos do espelho. Sua poesia nos remete constantemente as nossas próprias visões do amor e avisa aos leitores: Decante sua audição para acordar os olhos.

 

 


Isabela Sancho é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora dos livros “As flores se recusam” (Patuá, 2018 – menção honrosa no Prêmio Literário Glória de Sant’Anna, Portugal, 2019), “A depressão tem sete andares e um elevador” (Penalux, 2019 – menção honrosa no Prêmio Literário Glória de Sant’Anna, Portugal, 2020), “Monstera” (Urutau, 2019 – finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura, Brasil, 2020) e “Olho d’água, espelho d’alma” (Folheando, 2020 – primeiro lugar no Prêmio Literatura e Fechadura, Brasil, 2019), além da plaquete “Quem fala em seu nome” (Primata, 2019).



Katia Marchese, Santos, 1962. Publicações: plaquete Por favor, diga meu nome (edição Coletivo O Ateliê de Poesia; com a produção gráfica de Uva Costriuba, 2019). Foi contemplada pelo ProAC Poesia de 2019, edital do Governo do Estado de São Paulo, com o projeto do livro Mulheres de Hopper. Formação no Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE) de 2019 (Casa das Rosas – Museu Haroldo de Campos de Poesia e Literatura/SP). Participa do Coletivo O Ateliê de Poesia, aluna ouvinte no curso de Estudos Literários da UFF com a prof. Tatiana Pequeno. Mora em Campinas e é consultora em projetos de gestão pública. Mulheres de Hopper é seu primeiro livro.