por Adriano
B. Espíndola Santos__
Saiu
pela porta estreita da cozinha, em direção ao quintal, como se não quisesse
nada. Desceu a pequena escada de concreto, pé ante pé, passos trôpegos. O olhar
caído repousava no vazio sedento. Passou as mãos no cabelo antes de mirar o meu
rosto de relance e finalmente cumprir a curta jornada, ali. “Claro!”, pensei; seria
mais um dia de desastres provocados pela enxaqueca – um dentre tantos. Morando
e me protegendo sob suas asas-mães, abrangia qualquer indício prejudicial.
Enquanto me descuidava em labirintos mentais com as conversas de Fernando, um
primo meu que vez por outra ia à nossa casa para deixar uma lembrancinha para a
“cumadi Tonha” – a tia a que chamava de comadre –, feijão verde, farinha d’água
ou pão caseiro, escutei um rebuliço na lavanderia, como se mãe estivesse à
procura de algo, e, logo, o estrondo. Fernando, apesar da cara de espanto, ausente,
continuou falando – ele fala pelos cotovelos. Eu o abandonei em um dos seus
causos medonhos e corri para ver o que havia sucedido. Mãe estava estirada,
desacordada, no chão de terra batida, enfurnada num monte de roupas sujas. De
tão magra, via-se parte da cabeça, virada para baixo, decerto comprometendo a
respiração. Levantei o seu corpo e o pus no meu colo, tentando revitalizá-la,
ainda a tempo, com tapinhas em seu rosto. Não surtiu efeito, então passei para
manobras desajeitadas: ventilação, no famoso boca a boca, e empurrões bruscos
no seu peito de passarinho, desnorteado na dosagem da força. Ela não se mexia
por nada. Viesse o vendaval que viesse, ela estaria ali, alheia ao mundo.
Desesperei-me mais quando o tonto do Fernando aportou e disse que eu estava
fazendo um alarde “danado”; que bastaria um copo de água bem fria para ela
acordar. De imediato, ele se botou em nossa frente e jogou a água, que também
me banhou. Como era de se esperar, nenhum efeito ocorreu, a não ser o
agravamento da situação; estávamos todos banhados, de suor e água. Eu lhe pedi
que ao menos ligasse para o pronto socorro e solicitasse uma ambulância: “Urgente!”.
Ele, enfim, entendeu e saiu, nervoso, elaborando as minhas palavras. Eu nunca
havia falado assim, mas a ocasião demandava energia e decisão. Acordado da
catatonia, Fernando começou a discar e ligou para a polícia. Não precisávamos
de mais problemas. Pedi que desligasse. Eu mesmo liguei e fui atendido por uma
atendente bondosa e, na mesma proporção, lesada. Ela demorava a responder as
minhas súplicas. Detectei que estava, simultaneamente, em duas ligações. Demandei,
com insistência, que tivesse atenção e respeito. Ela somente disse: “Sim,
senhor! Estou processando o seu pedido”. Num primeiro instante, pensei que estivesse
com uma assistente de telemarketing; mas, olhando para a minha mãe desmaiada, suportei
o peso da responsabilidade e da carência descomunal – minha e dela. Estando
prestes a desligar, a moça retornou e disse que o veículo estava a caminho, com
a equipe médica. Ainda havia pulso, disso eu estava seguro; era o mínimo que
poderia saber, o essencial. Num artifício para tentar driblar a ansiedade
mortificante, coloquei o meu ouvido direito no seu nariz e notei que estava
respirando, pequenina, insignificante. De fato, em um dia normal, mãe falava
baixo e dava poucas pistas de estar viva. Não era exatamente uma novidade; mas
algo fora do habitual. Fernando ainda estava aí; contudo, para mim, era como se
não estivesse – era como se fosse uma das plantas ou ornamentos inanimados que
jaziam no recinto. Ele continuava falando e soltava um bodejar constante e confuso;
parecia que estava numa espécie de redoma, preso no vácuo do tempo. Não, nós
que estávamos, eu e minha mãe. Quando a ambulância chegou, pude escutar um
zunido agudo que vinha da rua. Fernando se prontificou a abrir o portão. O
médico foi o primeiro a divisar o horizonte. Tinha a face plácida, feito um
crente aos pés de uma imagem sagrada. Em segundos, vi minha mãe assentada numa
maca, coberta de fios e tubos, que, inclusive, invadiam o seu nariz e a sua
boca. Imoderado, havendo diagnosticado a desfalecida num piscar de olhos, o
médico disse que se tratava de um evento grave e que tudo indicava ser um AVC. Por
pouco não caí teso para trás; foi a hora que Fernando me segurou e me colocou
sentado na pequena escadinha de concreto. O que seria de mim? O que seria de
nós, um sem o outro? Desde pequeno eu tive a firme impressão de que
respirávamos juntos o mesmo ar; que ela era a minha única bússola; que ela era
os meus pés para caminhar. Não existiria nós sem ela. Recobrei os sentidos. O
médico também me atendia e me levou ao hospital. Fomos dispostos em alas
diferentes: eu, numa sala intermediária, onde ficam os moribundos, e ela, na
UTI. A partir daí, com informações precárias, perdi a conexão com a vida; com
as vidas, minha e dela. Cortaram o nosso elo, o cordão umbilical, e agora não
sei o que é existir. Passo as noites tentando decifrar o que escrevo. Não
durmo. Não como. Não bebo. Forçam-me a cumprir as necessidades do corpo. Para
quê, se não há nós? São horas intermináveis, nesse hospital-cemitério. Qualquer
momento desse, me assusto com uma tremenda notícia. Não ouso saber da verdade.
Prefiro a morte à constatação.