Crônicas de uma Fortaleza Obscena

por Alberto Perdigão e Íris Cavalcante__




Éramos todos muito jovens, naquele tempo em que dizíamos obscenidades em papéis de carta borrados de perfume, em que nos oferecíamos com recato e pudor em fotografias impressas. E tínhamos pressa.


Recebi uma carta, na sede da emissora de televisão onde trabalhava. Talvez tenha sido a primeira missiva remetida por uma fã. Assim se apresentava. Assinava Volúpia. Morava num sítio, que é menor que uma localidade, menor que um distrito, em um município entre serras. Estava na escola básica ainda. Dizia que me achava isso e aquilo, que queria me conhecer.


Numa segunda carta, com a mesma letra caprichada, dizia que me amava, que não saberia viver sem mim, que eu era o homem da vida dela, que queria me ver. Mandava uma foto, de farda, com um quê sensual. Mais uma semana e, numa terceira tentativa derretida de desejo, dizia que sonhava comigo, que ficava excitada, que me havia escolhido para ser o seu primeiro homem, que queria se entregar toda para mim.


Que é isso? Resolvi ligar, sem saber ao certo o que diria para aquela fêmea tão ousada e decidida. Isso me atrai nas mulheres. Mas eu sabia que havia ali algo mais a cuidar que um corpo sedento. Não bastava que eu entrasse como imagem, todo dia, na casa dela, teria que entrar como realidade nela também.  Pedi que, primeiro, recebesse-me em sua casa por uma noite. Disse-lhe que queria conhecer o lugar onde dormia.


Atravessei serras, subi montanhas, cheguei. Volúpia aprontara os cabelos, pintara as unhas. Nada de roupa especial nem batom, fazia parte do plano de discrição. O olhar era sedutoramente cúmplice, o sorriso era de gozo. No rosto, ainda trazia algumas espinhas. O corpo moreno, magro, perfeito exalava em mim todos os hormônios e enzimas, todos os neurotransmissores e catalisadores do desejo de uma mulher.


Conheci o pai, a mãe, aquelas mãos grossas, as palavras doces para o rapaz da televisão que viera de Fortaleza. Estive com os irmãos, muitos irmãos, comemos todos na mesa que olhava para o quintal. Eu via o vento, ouvia bichos. O açude, a roça, as veredas, a paisagem azul. Flores no mato, borboletas, passarinhos. Era tudo perfeito ali para uma ninfeta abaixar a calcinha, subir a camiseta.


À noite, havia sapos, cigarras, grilos, corujas e vagalumes. Eram muitos e de toda cor. Parecia árvore de Natal, céu de Réveillon. Nem lembrei de olhar as estrelas. Confirmei com Volúpia que cumpriríamos o trato, de que eu não iria para a cama dela e ela não viria para a minha. Do parapeito da varanda, ela olhou o oitão, mirou o infinito e tomou um daqueles insetinhos pela mão.


–Volúpia – disse-lhe, os vagalumes vêm todas as noites, e vêm mais no frio e na solidão.


Ela me olhou com ternura, querendo ouvir mais.


– Eles sempre voltam, trazem a mesma luz, mas nunca são os mesmos – continuei.


Ela sorriu, como se entendesse. Fechou a mão, como quem abraça alguém que ama, e 

olhou pela fresta do dedo indicador.


 – Se você o prende, ele acende. Mas você já não pode ver – tentei explicar-lhe sobre 

amor e liberdade.


 – Entendi – encerrou, soltando a luzinha no ar.


 Olhei para os lados. Beijei-lhe devagar e suave a maçã do rosto molhada. Senti o gosto de sal tocar o meu lábio e tomar a minha boca. Ouvi trovões ao longe, ao longo daquela noite. Ou eram aviões. Relâmpagos pareciam alguma entidade mágica a fotografar aquele instante.


Um galo, outro galo, um jumento… Um cachorro cotó empurrou a porta para a luz da manhã entrar e anunciar a hora de partir.


A meninada fez uma algazarra carregando o carro de presentes. Jaca, jerimum, melão, melancia, lima, limão, folhas de chá e chuchu. Mel de engenho, uma bandeja de ovos e uma garrafa de zinebra.


A serração tomou conta da cena, parecia gelo seco naquele palco de singeleza e saudade. Mal deu para ver Volúpia num aceno para mim mais que obsceno: um adeus de miss.


Abro esta tentativa atrevida de prefácio com um arremedo de crônica cheia de verdade e fantasia, de realidade e alegoria, como são as narrativas que se seguem nesta surpreendente coletânea, que, como fio condutor de uma corrente de contas, digo, de contos, desmonta os limites semânticos da palavra obscena.


O que é obsceno? É esta a qualidade do que é despudorado? O que é o pudor? É um prazer ou uma dor? São muitos os possíveis significados, como se veem nas improváveis ressignificações que se encontram aqui, em cada página, em textos que parecem ter sido escritos livremente, depois de fechar a porta, apagar a luz e entrar debaixo do lençol.


Escritores aplaudidos e outros só agora revelados olham as obscenidades da Fortaleza que não é trocadilho, é conhecida, e assim também se reconhece, como A loura desposada do sol. Quê? Ou “A loirinha desmiolada de sol”, como diz o dileto amigo e escritor Ricardo Kelmer, que tão bem sabe traduzir uma libido chamada fortalescência.


São escribas que escutam Fortaleza, no seu mais eloquente grito de angústia e no seu mais íntimo gemido de amor. São médiuns que psicografam 5 Fortaleza nas suas sentimentalidades mais profundas, nas suas culpas e contradições, nos seus medos e incompreensões.


São de diferentes idades, alguns nem nasceram aqui. São diversos em profissão, escolaridade, renda, local de moradia. Distintos em orientação sexual e política, em raça e religião. Uma pluralidade de autores e de temas e de perspectivas que reflete a fortalescência polimúltipla e que faz o leitor se sentir na rua Guilherme Rocha.


É ali que a Fortaleza, fresca como é, se veste de vento atrevido para levantar a saia das mulheres pudicas. “É um vento pervertido, sopro-devasso, artarado, brisa-indecente, um frescor cínico, corrupto e depravado que não distingue idade”, descreve Gabriela Vitalino.


É o mesmo vento que nos consola do sol. “Na Granja Portugal, periferia de Fortaleza, o sol dita as regras até do mercado”, relaciona Ítalo Leite Saldanha. “Seus raios atravessavam os vidros sujos da Topic 57, que vai do Centro ao Vila Velha”, Rejane Nascimento de Sousa.


Os personagens aparecem nas narrativas com a fortaleza da primeira pessoa no presente. “Prazer, me chamo Dara, tenho 28 anos, trabalho no cruzamento da [avenida] Barão de Studart com [avenida] Beira Mar, tenho um amor e muitos conflitos”, apresenta Íris Cavalcante.


“Os meus pensamentos fixam-se impacientemente nos pés de minha senhora, que se diverte implacavelmente com todo o meu corpo, depois de me ter amarrado”, detalha Alberto Arecchi.


Outras cenas são resgatadas do passado, como numa terapia. “Me levou para o escurinho de uma árvore frondosa e abriu as calças para que eu pudesse ver o quanto ele era abençoado e falou: – Quer pegar?”, lembra Leide Freitas.


Às vezes o personagem está em diálogo com a Fortaleza obscena. “Seu habitat é o asfalto da Meton [de Alencar, no Centro], espaço das sereias e iaras, em meio a uma ruma de ‘aquários’, num sistema de pesque e pague, onde a clientela escolhe qual fruto da água quer”, descreve Carlota Camburão.


A obscenidade também está no abuso, no estupro do ambiente. “Encheram seu mar amado de plásticos e o ar não tem mais a pureza dos tempos de Iracema”, denuncia Hermínia Lima.


“És o espelho de taras indizíveis, o corpo esfoliado pela louca fome de lucro,o gozo infeliz que nega o próprio ser”, explica Paulo Albuquerque.


Este é o Crônicas de uma Fortaleza Obscena, com que o leitor se deleita, a partir de agora. Parabéns à escritora Íris Cavalcante pela ousadia e esmero da organização da obra – a literatura e a história lhe agradecem. E aplausos a cada coautor que emprestou o seu talento na qualificação da coleção. Ao final, como ocorreu comigo, o leitor irá perceber como Fortaleza é obscena. E como o obsceno pode ser também uma fortaleza.


Alberto Perdigão


*Prefácio da obra


Nota da Organizadora

 

A injustiça é das coisas mais obscenas que conheço e pode resultar impiedosa quando passa a compor uma narrativa de vida. Desde que vivi essa experiência, passei a fazer um exercício de deslocamento para entender também sobre as dores das outras pessoas, as paixões que as movem e outras formas de obscenidades.


Quando em A obscena senhora D, nossa inspiradora Hillé, diz: “Não estou bem, Ehud”, ao que ele responde: “Ninguém está bem, estamos todos morrendo” – um diálogo escrito em 1982 que tão bem se acomoda no hoje – me serviu de mote para essa antologia, num fluxo quase irracional de consciência, palavras e pensamentos. Esse é o caráter atemporal da literatura.


Crônicas de uma Fortaleza obscena é proposta de acesso à multiplicidade de vivências, prazeres e dramas, a partir do diálogo imagético e intertextualidade com o obsceno.


Obscena é a ganância, a injustiça, a desigualdade social, a violência contra a mulher, a misoginia, a transfobia. Obsceno é o fascismo, o negacionismo da ciência, o superfaturamento da vacina, o feminicídio, o racismo, os inumeráveis tipos de segregação e preconceito que nos violentam, silenciam e matam.


Eis portanto, um registro do nosso tempo, escrito a várias mãos. Aqui, o que define o gênero literário é a relação da autora ou autor com o seu texto: crônicas do cotidiano, minicrônicas, narrativas carregadas de verdades, contação de causos. Tudo isso envolto em ternura, inquietação, revolta, sensualismo, volúpia e obscenidade, seja qual for a interpretação dada ao substantivo.


Foram dois meses de leitura e curadoria dos textos com a presença sempre forte das personagens em cena, como se estivéssemos na Praça do Ferreira ou à mesa de um bar no Dragão, Benfica ou Conjunto Ceará, ficcionando nossas resenhas da vida real.


Sou Íris Cavalcante, organizadora e cronista dessa antologia, feliz por dividir esse espaço com escritoras e escritores iniciantes ou premiados. Ainda mais feliz por estimular a ousadia de uma escrita subversiva, disruptiva, fora da curva, que resultou sutil, voraz e surpreendente. Nesse canal de livre expressão, rasgamos a opressão, rompemos padrões, fizemos protesto e resistência. E vimos nossa Fortaleza linda e tão desigual planando no imaginário coletivo de tanta gente daqui e além fronteira. Enquanto ainda não podemos ocupar os espaços da cidade como gostaríamos, vamos fazer a ocupação a partir da nossa voz política e literária, nas ruas, praças, bares, universidades, praias, periferias.


Obrigada a cada um e cada uma que toparam o desafio de se expor em forma de texto, despir-se de pudores e cerimônias. Ter coragem também é mostrar-se, tirar o texto da área de trabalho e trazê-lo ao mundo. Isso é fortaleza. Vocês deram o tom da narrativa, e com o seu traço particular, abrilhantaram essa produção coletiva.


Ah, e quando penso no obsceno, não me remeto, propriamente, ao que as pessoas fazem entre quatro paredes ou a céu aberto ou onde queiram, para dar vazão à sexualidade. A primeira imagem que me ocorre é o manto do silêncio esticado por várias mãos para encobrir qualquer injustiça.

 

Irís Cavalcante


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Alberto Perdigão
, fortalezense, jornalista, professor, mestre em políticas públicas e sociedade. Instagram @falaperdigao


 








Íris Cavalcante, escritora cearense nascida em Baturité, Especialista em Escrita Literária pela FBUNI. Tem algumas publicações independentes e participa de antologias de contos, crônicas, poemas, colunista semanal da Revista Tamarina Literária. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesia com a obra Vento do 8º andar e autora de Por quem elas se curvam, Editora Rima Rara, 2021, disponível em e-book na Amazon e livro físico à venda nas principais livrarias de Fortaleza.