por Émerson Cardoso__
(Para ler ao som de Lírio rosa, de Pedro Loureiro e Luciano Mello, na voz de Elza Soares)
Ser um homem não viril é um ato revolucionário (Guilherme Terreri)
Desci para a plataforma de embarque. Vi o
ônibus. Entrei. Tudo era fim de tarde naquele universo de sol morrendo aos
poucos. Poltrona sete. Sentei. O sol queria permanecer um pouco mais. A vida
inteira cabia naquele espaço tão fechado quanto o tempo em meu rosto insone.
Aventurei um riso – me frustrei. Levantei
as pernas em abraço de feto na barriga de uma mãe ausente – entristeci. O sol
escureceu meus olhos – angustiei. Iria para sempre. Passei a mão no rosto. Iria
para sempre. A boca amarga. Iria para sempre. Enquanto me perdia em solidão e
caos, olhei pela janela. Na rodoviária, com o sol se pondo, vi o amor se
materializar na figura de dois rapazes.
De frente um para o outro, como se
quisessem adiar a despedida, eles se abraçaram. Um era anêmico pela própria
natureza – os cabelos escuros caíam nos olhos. O outro era sério. Olhava perdido
para o mundo e trazia nos ombros a letargia do domingo à tarde.
O sol espalhava prenúncios de adeus.
Com o transporte às vésperas de sair, o
amor se fez carne e habitou entre nós. Eles se beijaram. Tanta ternura se deu
no beijo, tanto amor concretizado se fez no gesto, mas o ódio, intolerante,
resolveu puni-los.
O velho ao lado deles saiu com nojo. O
menino que os olhava foi repreendido pela mãe. O atendente da lanchonete riu. A
mulher que limpava o local, estarrecida, cessou a vassoura. A moça com Frida
Kahlo na blusa fez esforço para agir naturalmente. O homem ao lado dela
conferiu o relógio e virou-se. A freira de hábito irreprochável fez o sinal da
cruz.
O desconforto passeou pela rodoviária, mas
o amor, indiferente, dançou no espelho dos olhares perplexos. Quando o amor
dança, o ódio não consegue prendê-lo com seus grilhões enferrujados.
Depois, um se arrastou para o ônibus e o
outro paralisou na plataforma. Sob vigília, eles sentiram o sol se tornar
áspero demais. Irmãos de muitas lutas, não saberiam lidar com a distância que lhes
queria perfurar os corações exangues.
O que se foi baixou os olhos. O que ficou
conteve o choro. Nuvem não segura tempestade que teima em descer. Aos poucos, o
que era lágrima se fez soerguer do corpo. Ai, ai, ai!, rosnou um homem a
reprovar seu pranto. O mundo foi dominado por esse bando de bicha!, ladrou
outro. Uns riam, outros estranhavam. Uns diziam que era o fim do mundo, outros
reprovavam em silêncio. O amor tem duas margens e um rio que lhe atravessa.
Eu contemplava a cena em silêncio. Não se
pode dizer muito quando o amor derrama ausências.
A distância tem ciladas: aonde iria um?
Aonde iria o outro?
A rodoviária era pequena para o amor de
dois homens em estado de lágrimas. O sol vestiu ausência, a lua desceu com
colares de solidão.
Eu flagrava a cena em silêncio, mas...
Sofri pancada no rosto, ou pressenti o
transporte em prenúncios de partida?
Saindo da rodoviária, constatei que um dos
rapazes em despedida, na cena que contemplei, era eu. O sol fugiu. A escuridão engoliu
meu corpo. Eu fiquei aos gritos – ninguém me ouviu da sepultura. Elza Soares
cantou Lírio rosa – e eu furei os
olhos para não ver pela janela.
Eu desejei dizer que. Minha boca tentou,
mas. Meu corpo precisou de seu complemento, só que. Na poltrona, fui afixado por
milhões de pregos. Não pude fugir, apesar de.
Fui embora doendo sempre nos solavancos do
ter-que-ir-para-nunca-mais.
CARDOSO,
Cícero Émerson do Nascimento. Poltrona sete. In: O baile das assimetrias.
Fortaleza: Luazul Edições, 2021.