Um teatro é um abraço, crônica de Germana Accioly

 

por Germana Accioly__


Fotografia:Germana Accioly



Não leve em consideração esta foto amadora. Foi o melhor que consegui. A luz estourada, a falta de foco e enquadramento, a evidência na cortina encarnada com franjas douradas, os arabescos que aparecem na penumbra e quase nada dizem do momento que vivi. O piano parece até mais magro na imagem, uma perspectiva pouco usual. O pianista, que tinha o holofote sobre si, no meu registro é um homem sem rosto. O artista com pele de cera.


- E porque, então insistir em publicar e descrever uma foto tão insignificante?


- Pela força do momento.


O palco é do Teatro de Santa Isabel. Desde criança frequento o lugar. Já vi espetáculo da plateia, dos camarotes, das frisas, da torrinha e até das coxias. Já estive na plateia e no palco. Ri e chorei. Aplaudi, pedi bis. De monólogo a orquestra. Peça infantil e dança. Teatro de bonecos e coral. Eu poderia lembrar muito mais.


Um teatro é um abraço. E no desenho do Santa Isabel, o abraço é real. As frisas contornam a plateia. São braços sinuosos e roliços que envolvem as cadeiras.


O que posso ver além da foto é a emoção de ter voltado depois de um ano e oito meses de jejum. Acho que nunca fiquei tanto tempo sem pisar ali. Fui chegando e logo na porta recebi a acolhida de Dona Ivete, que vende cerveja, café, confeito, chocolate e pipoca.


-Quanto tempo! Foi ela me falando, em tom de festa.


O que posso ver além da foto é o cheiro da sala de espetáculo, o meu pé pisando no carpete macio, as escadas que me conduzem ao meu lugar. O toque triplo que avisa o início do espetáculo. As luzes se apagando aos poucos. A expectativa de comungar de mais uma aventura.


Hoje foi o primeiro concerto desde o início da pandemia. O teatro estava “lotado”, com apenas 30% da capacidade ocupada. E eu lá.


E o espetáculo? O piano esculpido e lapidado de Luís Felipe Oliveira. A música que atravessa a gente sem parcimônia. A capacidade de revirar as tripas da alma. O pernambucano de Gravatá flui. Interpreta Beethoven, Lizt, Dutilleux e Chopin num diálogo forte, doce, emocionado. Na minha cadeira, os óculos ficaram embaçados algumas vezes. A alegria de compartilhar tudo aquilo. A força da arte.


O tempo passou espichado, querendo que não acabasse nunca. Na última peça um quinteto de cordas acompanhou o pianista. E eu ali querendo absorver cada segundo. Laila no palco com sua viola, uma sianinha que enfeita as vestes da minha ânima.


Quando a luz acendeu, eu já estava em pé. Um grito de “BRAVO!” me saiu inadvertidamente, meio tímido ao mesmo tempo. Como se o distanciamento social ou a abstinência tivessem de alguma forma me atingido.


O espetáculo acabou e juro a vocês que trouxe partes dele comigo. Aliás, acho que ele começou muito antes, quando Dante me convidou para ir ao teatro. Quando escolhi o vestido e pedi o Uber. Quando desci com Luís e Lis e nos juntamos a Dante no café do Teatro. O primeiro marejar foi fruto de me ver com meus filhos na frisa. Tão pequeninos, eu os trazia pelas mãos nos domingos de tarde. Senti o passado com seu negativo não revelado projetando as imagens.


Saí do Teatro meio muda, meio exausta. Meio saudosa, meio de ressaca de tanto sentir. Saí querendo que o teatro me abraçasse mais um pouco. E querendo também descansar. Saí como uma criança que ama e se exaure na primeira festa de aniversário.


Aqui, muito pra nós, acho que o Santa Isabel estava também saudoso de mim. Minha crônica poética dá conta disso. Meus versos de algum jeito também são filhos daquelas paredes seculares. Sou bisneta ou afilhada da arquitetura. Sou formada nesta escola.


Eu só pensava em chegar em casa, escrever este texto antes que ele se diluísse na minha rotina de amanhã.






Germana Accioly é escritora e jornalista. Escreve no blog Perder de Vista