Ela não tinha medo | Luiz Henrique Gurgel

por Luiz Henrique Gurgel__




Para lembrar a indômita Luz del Fuego, ouvindo a música de Rita Lee. Faz 55 anos que ela foi assassinada.


Desde mocinha abominava sutiã, Eva era sua personagem predileta. A família, apesar de rigorosamente católica, não achava aquela personagem bíblica o melhor exemplo a ser seguido. Mas Dorinha gostava de andar por aí tal qual a Mãe dos Homens, do jeito que veio ao mundo, acompanhada de uma jiboia. Melhor dizendo, de um casal delas, Cornélio e Castorina, inofensivas como qualquer ser do Paraíso.


A mãe carola queria casar a filha o quanto antes. Mas aquela mania de ficar brincando nua com jiboias não entusiasmava nenhum rapaz de boa família. Um cunhado atrevido quis graça com Dorinha. Ficou fula, brigou, denunciou o descarado. A irmã, mulher do dito cujo, insinuou que a culpa era dela. Absurdo! A menina podia ser apimentada, mas não dava trela para pangaré metido à besta. Ainda mais, cunhado.


Seu jeito de ser incomodava aquela tradicional família capixaba, instalada em Belo Horizonte como legítima família mineira. Resolveram interná-la num hospital psiquiátrico. Sofreu, mas saiu inteira. Foi para o Rio de Janeiro sob cuidados do irmão mais velho. Continuou aprontando. Menina da pá virada, precisava se livrar da tutela, viver sozinha, sem contar com a grana de casa.


Moça de belas curvas, simpática, provocadora e absolutamente livre, queria porque queria ser bailarina. Arrumou amante que bancou curso nos Estados Unidos. De volta, começou a se apresentar em circos e teatros de revista com suas jiboias. Dora Vivacqua adotou o nome de Luz del Fuego, marca de um batom usado pelas estrelas de cinema. A endiabrada e caliente bailarina perturbava a sociedade carioca, chegou a ir nua à Praia de Copacabana e várias vezes foi processada por atentado ao pudor. Não temia escândalo e esbravejava contra oportunistas e falsos moralistas, manifestou-se pelos direitos das mulheres.


Em 1951 concretizou o sonho de fundar um clube naturista, lugar em que famílias inteiras – pai, mãe, filho, filha (desde que maiores de idade) avô, tia, cachorro, gato e galinha – pudessem viver nuas, integradas ao meio ambiente. Se hoje parece pouca vergonha para alguns, imagine nos anos de 1950. Para Luz, a indumentária não era necessária à moralidade do corpo. “Ele não tem partes indecentes a esconder”, dizia. Seduziu o Ministro da Marinha e conseguiu uma ilha de 8 quilômetros quadrados na Baía de Guanabara. Rochosa, cheia de cactos, sem água doce e com uma única árvore. Batizou-a Ilha do Sol, nascendo o Clube Naturalista Brasileiro, primeiro da América Latina. Sócios tinhas carteirinha com foto e o símbolo da instituição era uma folha de parreira. Ao desembarcar na ilha – onde não era permitido o consumo de bebidas alcoólicas -, um cartaz em quatro idiomas dava as boas-vindas e solicitava: “Por favor, tirem a roupa”. Depois as regras: “Nesta ilha é proibido proferir palavras de baixo calão e também a prática de atos indecorosos. O nudismo só pode ser entendido por aqueles que possuem mente sadia”. Mais decente que a finada Ilha de Caras.


O clube durou até os anos de 1960 quando Luz foi à falência. Denunciou pescadores que usavam dinamite para pescar na baía e acabou assassinada em 1967. Um dos criminosos, conhecido de Luz, ainda declarou ressentido: “Aquela puta preferiu me escorraçar a receber os meus carinhos”.


Essa mulher autêntica e de coragem, sem preconceitos, virou música de Rita Lee e filme com Lucélia Santos. Ela não tinha medo, por isso também foi pro céu. Contei sua história pensando em tanta gente que tira a roupa sem razão por aí, ou só por “like$” nas redes (in)sociais. Ou o que é pior, pensando na moça que fez topless numa praia do Espírito Santo (por ironia, terra de Luz) e que enfrentou a polícia, acabando presa e algemada na delegacia ao lado de um homem sem camisa... Anos depois e as coisas continuam complicadas.  



 






Luiz Henrique Gurgel
- É paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. É autor do livro de contos “amores malfadados” (Editora Primata, 2021)