por Alessandro Caldeira__
 Reprodução: clica aqui 
-Mamãe,
por que a gente tem que ir pra escola? 
- Se a
gente não ir podemos ficar burros.
- Mas,
mamãe, a senhora não foi para a escola e nem a Tia Mara e vocês duas não são
burras.
- Não, minha filha, somos pior: além de burras, não temos oportunidade na vida. Olha esse
 material que custa o olho da cara! 
- Pois
eu não acho, não acho mesmo. A gente não devia ser obrigado a estudar, sabe?
Vai quem quer. E outra... 
- Meu
Deus! Como vamos pagar isso tudo para você? E essa sua escola pede um monte de
material específico: é estojo disso, caderno daquilo, apostila de não sei
quantas folhas. 
- Mamãe,
eu tô falando! 
- Fala,
minha filha, o que foi? 
- Eu ia
dizer que o povo da escola é tudo metido. Sabe o que acontece na minha escola? 
- O
que? Ai que caro! Só compro essas coisas para você ser a melhor, ouviu? 
- Na
minha escola acontece assim: se alguém se destaca parece que a professora é
segunda opção. E, mamãe, às vezes os motivos são muito bobos! Tem um aluno na
nossa sala que todos chamam de Fabinho. Sabe o que o Fabinho faz? Beija todas
as garotas! Vê se pode? E elas deixam só porque ele é bonitinho e o Fabinho faz
tudo o que quer só porque todo mundo o acha bonitinho. 
- Isso
é normal, filha. 
- Teve
uma outra vez, deixa eu te contar. Essa é pior. Uma menina, ela é até
engraçadinha, tem um cabelo curtinho, sabe? Ela é muito bonita. 
- E daí,
minha filha? 
-
Calma, mamãe, eu vou te contar. Então, eu acho que ela tem alguma dificuldade,
sabe? Mas ela é bem bonita, eu te juro, muito bonita. 
- Qual
dificuldade, filha? Fala logo! 
- Ela
não sabe escrever direito, mamãe. E todos os alunos zombam dela, mas eu juro, ela
também é muito esperta. 
- Como
ela é esperta se ela não sabe escrever? 
-
Porque ela sabe recitar poemas, mamãe. Descobrimos isso na aula de português. Lembro
até hoje, ela lá na frente, toda tímida, sabe? Só que mesmo assim ela foi:
"gente, eu não sei escrever muito bem, mas quero recitar um poema que fiz
da minha cabeça: uma formiguinha solitária passou na minha frente/tive pena
dela e segui a formiguinha até ela se enfiar num buraco/tadinha; tão
pequeninha/será que ela não se machuca no Sol?" 
- Mas
ela nem rimou, minha filha! Como isso pode ser um poema? 
- Não
precisa rimar, mamãe. Se você sente, já é um poema. 
- Meu
Deus! Já estamos aqui faz meia hora e nem levamos nenhum material escolar
ainda. 
-
Mamãe, sabe o que é o pior? Ninguém da sala prestou atenção no poema. Quer
saber o motivo por que ninguém prestou atenção, mamãe? Quer?
- Fala
logo! Como você é enrolada. 
- O
motivo é que todo mundo só ouviu quando ela disse "que não sabe
escrever" e todo mundo caiu no riso, mamãe. Mas eu não, eu não ri! Eu
chorei... Pelo poema e por ela. As pessoas não entenderam, mamãe; as pessoas
não entenderam. Se elas entendessem, iam chorar como eu. Mas como entender se
elas nem prestaram atenção? 
- Você
é muito dramática, minha filha, por isso chorou. 
- Sou
nada! Não sou, mesmo! Todo mundo prestou atenção na do Fabinho só porque ele
falou de cinema e música. As pessoas são muito bobas na escola, mamãe. Só
porque alguém mete referência em tudo já fala que é inteligente. Mas eu te juro
que o poema dele não era bonito. 
- Mas
ele é mais inteligente, né, minha filha? 
-  Ser inteligente não é importante, mamãe. Bom,
mas deixa pra lá. Sabe o que aconteceu depois disso tudo? Viramos amigas. Eu
queria ser como ela, sabe? Senti inveja, mas sabe aquela inveja que dá vontade
de abraçar a pessoa? 
- A
minha filha sente inveja de quem nem sabe escrever e eu aqui preocupada com o
material para a sua escola. 
- Mas
eu a deixei triste, mamãe. Sabe por quê? 
-
Pronto! Já temos tudo: estojo, caderno, apostila, caneta, lápis, borracha...
vamos embora. 
- Mamãe,
ela ficou triste porque eu não quis beijá-la, sabe? 
- Como
assim, minha filha? 
- Sim,
mamãe, e quando ela se declarou para mim, disse bem assim: "Júlia, desde o
primeiro dia de aula eu reparo em você e só fiquei sua amiga porque eu te
amo." Mamãe do céu! Eu estremeci toda! Te juro, mesmo! Ela sabia falar
"eu te amo" e ela fala tão bem, mamãe. Eu nunca falei "eu te
amo" para ninguém e nunca tinha escutado isso. Me deu um frio tão grande,
sabe? Fiquei com uma vergonha... Mas não fiquei envergonhada porque ela é
menina ou algo assim, sabe? É que ela sabe falar tão bem! E olha, mamãe, quem
sabe falar bem deve beijar muito bem. Eu não sei beijar e muito menos falar
"eu te amo". Eu saí correndo e nunca mais a vi. 
- A
senhorita já falou muito, não acha? Pronto! Agora entra no carro. 
-
Mamãe, o Sol tá machucando, né? 
Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.
 
 
 
 
 
%20foi%20aluno%20das%20Faculdades%20de%20Direito%20de%20Lisboa%20e%20de%20Coimbra,%20frequentando%20at%C3%A9%20ao%205.%C2%BA%20e%20%C3%BAltimo%20ano,%20mas%20n%C3%A3o%20concluindo.%20Em%20jovem%20conviveu%20com%20Herber%20(1).png) 
 
 
 
 
 
 
 
 
Redes Sociais