Trecho do romance Quando as árvores morrem, de Tatiana Lazzarotto

por Tatiana Lazzarotto__

 



 

Perdi as contas de quantas pessoas me abraçaram nas quase vinte horas desde que entrei nessa organização chamada orfandade. Vocês foram uma família feliz. A frase se repete em várias bocas, como se a existência de meu pai, consumida, encerrasse um projeto de felicidade conjunta. Foram. Diante de escândalos domésticos expostos nas vitrines de um pequeno povoado, nossa família passou ilesa. O feito causava admiração, inveja, até raiva. No momento do velório, porém, a língua se diverte lambendo a ferida com acidez. A rachadura atingiu a nossa casa. A morte alterou a arrogância de sermos, verbo permanente, felizes. Fomos. Nunca mais novamente.

 

(...)

 

No dia anterior, eu cumpria horas de expediente corporativo no oitavo andar de um prédio espelhado. Levanto-me do sofá e caminho até o caixão. O trajeto se parece com os mil quilômetros percorridos para participar do meu maior evento. Um clarão se abre. Sempre que um familiar se dirige ao corpo, quem o rodeia se afasta, para não macular a despedida dos mais íntimos. Mesmo sem a fantasia vermelha, a face de meu pai está caracterizada como personagem, o velho que distribui presentes por bondade. Ele deixa esquecer seu corpo numa varanda imaginária. Vejo-o como sempre, com o braço direito recostado na poltrona amarela e reformada da minha avó. Pende a cabeça, entrega-se ao peso do mundo. Depois do almoço, o canto dos pássaros no quintal se misturava ao seu ronco e as pessoas que passavam na calçada em frente à casa arriscavam cumprimentá-lo. Muitas mãos permaneceram erguidas no ar, sem que meu pai lhes respondesse. Outras mais seguirão sem resposta.

 

Quem conhecia meu pai se acostumou a vê-lo em três versões. Após o dia 25 de dezembro, costumava raspar a barba e cortar o cabelo que o caracterizavam, sobrando alguns fios descoloridos. Ele, então, remoçava. Por vezes colocava óculos escuros e se tornava um turista gringo, cuja rebeldia era, depois de velho, tingir os cabelos de branco, visto que a raiz preta já despontava. Em fevereiro, o ciclo recomeçava. Deixava os pelos pretos crescerem até novembro, quando se entregava ao ataque da química radical. O grisalho teimava em não lhe encontrar.

 

Tantos por aí envelhecem precocemente, minha barba não branqueia!

 

Reclamava, todo ano, antes de ir ao salão para se submeter ao que chamava de sessões de tortura. Na primeira descoloração, sofria com fortes reações alérgicas, o rosto ficava inchado, rijo, dolorido. A cabeleireira temia tanto que o organismo respondesse mal à tinta que o fazia preencher um termo de compromisso, assumindo a própria culpa em caso de morte. Nas descolorações seguintes, até a última, dias antes da noite de Natal, reagia melhor. O gramado de pelos brancos, porém, encobria feridas que cicatrizavam e reabriam. Tudo pelo personagem.

 

Ter um pai ladino, que se dividia em três, me fez acreditar que ele era eterno. A morte não seria capaz de laçá-lo, não sem triplo esforço. Aquele que ela me tirou tinha cabelos e barbas compridos e grisalhos, um ancião que se valia de descolorante e água oxigenada. Ainda restariam dois, num súbito abraço me tirariam dali? Meu pai existiu em movimento, por e apesar dele. Quando não havia trânsito ele criava, inflamava a roda da família para girar, ele no centro, compassando ao seu redor nossos espíritos circulares.

 

Sua dança em torno do tempo se unia aos filhos, em qualquer lugar que estivéssemos. Em certos momentos, sua energia nos varria, branda, juntando folhas na calçada. Noutros, era chama. Meu pai intervinha em nossas partidas de baralho, se metia em nossas trincas, a fim de que as jogadas se completassem sem esforço. Sem ele, seríamos apenas cartas ordenadas em seus respectivos naipes, pessoas que acordam, tomam seu café e sucumbem, cada minuto um pouco. Nós éramos mais, porque pescávamos coringa.

 

A existência do meu pai era nossa sorte.

 

(Trecho retirado das páginas 24-27)





Tatiana Lazzarotto nasceu entre o Noroeste de Santa Catarina e o Sudoeste do Paraná, em 1985. Desembarcou em São Paulo em 2011, onde vive até hoje. Graduou-se em jornalismo e em letras-português na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR). Atualmente, é mestranda em estudos culturais pela Universidade de São Paulo (USP). É uma das organizadoras de Cartas de uma pandemia: Testemunhos de um ano de quarentena (Claraboia, 2021). Em 2020, foi contemplada pelo ProAC de obras de ficção, com o projeto que deu origem ao romance Quando as árvores morrem, publicado pela Claraboia, seu primeiro voo solo na literatura. Instagram: @tatiana.lazzarotto