Cada leitor entrará com a sua leitura, subjetividade, sonhos e perdas pessoais | Ricardo Hirata

 

por Taciana Oliveira___




Conversamos com o psicanalista e escritor Ricardo Hirata, autor do livro “O órfão na estante” , lançado recentemente pela  Paraquedas, selo  da  editora Claraboia. O autor é órfão desde os 9 anos e para elaborar a perda dos pais, se coloca no centro de um processo investigativo-literário: Todo trauma é uma dor que nunca cicatriza por completo. Ela acaba “voltando”, seja pela cultura ou pelas histórias de vida, numa espécie de looping daquilo que não pôde ser colocado em experiência-palavra.

 


1 - Como você descreveria o processo de criação do seu primeiro livro, O órfão na estante?

 

A criação desse livro me acompanha desde a adolescência, ainda que eu não tenha me dado conta. A orfandade me levou a um estado constante de investigação interior, em função da minha própria personalidade curiosa. Penso que a vontade de conhecer a profundidade de mim e de outros foi de grande importância na elaboração dos lutos que vivi e ainda vivo. Por sorte, uma tia-psicóloga me acompanhou na juventude, ora estudando história e matemática, ora me contando sobre mitos, arquétipos e a dinâmica do inconsciente. Foi uma espécie de jornada pessoal que atravessou os terrenos da odontologia (profissão que herdei dos pais), da psicologia junguiana (orientação teórica da tia-psicóloga) até chegar à psicanálise, a literatura e o nascimento dos filhos. De alguma maneira, percebo hoje, eu e esse livro nos confundimos e nos diferenciamos, há décadas. Como afirma Mikhail Bakhtin, “a ficção é uma forma de experimentar a verdade”.

 

 

2 –  Diego Frichs Antonello em sua dissertação de Doutorado “Trauma, memória e escrita: uma articulação entre a literatura de testemunho e a psicanálise”,  apresentada ao Programa de Pós-graduação em Memória Social, Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, ressalta:  A escrita de um relato testemunhal pode ser entendida como iterável, porque escrever sobre o acontecimento traumático é lançá-lo  tempo e no espaço a partir do que foi experienciado, e poderá ser atualizado pela leitura do outro.

 Em “O órfão na estante” você refaz a trajetória do luto da perda dos seus pais. O que o leitor pode esperar dessa costura de memórias e autoficção?

 

Gosto da noção de “iterável”, algo que se repete e se renova no encontro com o outro (alteridade). A escrita da orfandade como uma obra que parte do trauma em direção ao horizonte do inominável. Pelas próprias limitações da linguagem, não somos capazes de narrar completamente o acontecido traumático. Cada leitor entrará com a sua leitura, subjetividade, sonhos e perdas pessoais, ao se aproximar do testemunho que habita o romance.

 

Cada leitor que se sinta tocado pela obra contribui também para uma releitura da mesma, ao longo dos anos futuros. A chance de novas descobertas ocultas nas entrelinhas do simbólico da arte será sempre um convite a novas possibilidades de elaboração. O que meus netos dirão sobre o livro, ou os vizinhos dos filhos deles? A orfandade não deixará de existir, assim como os esforços literários para lidarmos com ela.

 

Todo trauma é uma dor que nunca cicatriza por completo. Ela acaba “voltando”, seja pela cultura ou pelas histórias de vida, numa espécie de looping daquilo que não pôde ser colocado em experiência-palavra. A perda da mãe, por exemplo, me retornou como tristeza até o instante em que soube da gravidez do primogênito. Essa cena ficou inscrita no livro e, logo, “renovou” tanto a experiência da relação mãe-filho, como ressignificou em mim a palavra “mamãe”. Posso dizer que a minha mãe pôde enfim “partir”, porque o materno adentrou a minha vida, em mim e com a mãe dos meus filhos.

 

 

“Foram muitos anos, até escutar a palavra mamãe e sentir alegria.

 

— Escutam o coraçãozinho, no ultrassom?

 

— Parabéns, mamãe....”

 

(O Órfão na Estante, p. 71)

 

 

3 - Para alguns a leitura e a escrita são formas de transformar a própria trajetória. Quando você se descobriu escritor e de que maneira a tua obra conversa com sua formação profissional?

 

Sempre me senti atraído pelas histórias, as narrativas e as jornadas de heróis e heroínas. Quanto mais míticas, mais me instigavam. Eram os filmes e, em especial, as músicas e canções. Adolescente, apaixonado por instrumentos (e incapaz de tocá-los), aprendi a escrever enquanto escutava música. É curioso, mas o ritmo e a poética me fizeram morada, muito antes do meu primeiro texto. A escrita estava inibida, no interior de camadas de timidez que me custaram anos de percalços profissionais, desventuras amorosas e percursos de análise pessoal. 

 

À medida que me aproximei dos textos e da clínica psicanalítica, foram as próprias narrativas dos analisados que me forneceram novas perspectivas de falar e dizer. Sintomas, chistes, aspectos transgeracionais, foram muitos os elementos que Freud se alimentou em Cervantes, Shakespeare e Dostoiévski, para pensar a teoria e a prática. Do mesmo modo, a escuta clínica retorna à literatura, como numa fita de Möbius. 

 

 

4 – “O órfão na estante” conecta o leitor a uma memória afetiva onde temas como rejeição, orfandade e o não pertencimento permeiam a narrativa.  A escrita literária te ajuda na percepção do tempo presente frente às demandas da paternidade?

 

Sem dúvida. De tantas e enigmáticas formas, que meu próximo livro será sobre a paternidade. O que é ser pai, se não o tivemos? A escrita me auxilia a imaginá-lo, sonhar e experimentar, descrever cenas que nunca aconteceram e “testá-las” frente à linguagem e ao corpo do texto. Um romance fornece espaço e profundidade o suficiente para acompanharmos arcos de desenvolvimento das personagens em tempos e espaços diversos. A interação entre pai e filhos, ao longo das fases da vida. “Magicamente”, isto é, por efeito do simbólico, as pessoas-texto “ganham vida”. Nunca sabemos a priori o que será escrito, por onde passará a história. Algo muito semelhante à experiência da paternidade, aliás. Os filhos também “ganham vida” diante de nós.

 

 

5 – O poema “O Infinito” encerra a narrativa do teu livro.  A poesia é um gênero que você contempla para um novo trabalho?

 

Poucas vezes a poesia me visita, não muitas. Gosto de pensar que um dia ela ficará o bastante para um trabalho. “O Infinito” foi escrito na passagem do manuscrito original (sem cozimento) e a segunda versão do livro, o texto destinado à publicação. O poema sobre a experiência de estar fora do tempo e do espaço (característica do traumático) acabou também “ao lado de fora” do livro, no encerramento, entre esse livro e o próximo.

 

 

6 – Quem você citaria como referências fundamentais para a sua formação como escritor?

 

Além das mitologias (grega, africana, indígena) e dos autores clássicos, me marcaram: João Guimarães Rosa, Raduan Nassar, Drummond, Clarice Lispector, Primo Levi, Tarkovsky e Kurosawa.  Freud (e Hoffmann), Jung (e os alquimistas), Lacan (e Duras), Winnicott (e os bebês). Minhas análises pessoais e as falas dos analisandos. Com os meus filhos, noite a noite, Andersen e os Irmãos Grimm.





Ricardo Hirata - Psicanalista e escritor. Psicoterapeuta de casal, família e grupos. Psicólogo clínico com especialização pelo CEP-SP e Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professor no Curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos. Coordenador dos Laboratórios de Escrita Psicanalítica (CEP-SP). Consultor na LITERACURA, empresa voltada para a saúde mental em instituições. Membro do núcleo artístico Epidauro. Autor do romance de autoficção "O Órfão na Estante". Instagram: @rica.hirata

 



 

Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…