Pesadelos e Elos Pesados, crônica de Valdocir Trevisan

 

por Valdocir Trevisan__






 Sonho que se sonha só é só um sonho.



Como é gostoso ter sonhos agradáveis. A pessoa desperta com o espírito mais leve para caminhar no sol que insiste em se esconder nesse começo de primavera. Choveu tanto nas últimas semanas que lembrei de um conto de Dostoiévski. Ao encontrar um amigo nas ruas geladas de São Petersburgo, que por raros momentos abre espaço para dias ensolarados, o jovem ao invés de perguntar como vão as coisas, comenta: "Mas que dia, hein?".


Sonhar é preciso.


Como é bom realizar nossos "sonhos", não é mesmo?


Porém, entretanto, os pesadelos escurecem a luminosidade impressionista e pesam como elos escravagistas que rasgam corpos e almas.


Assim como figuras abstratas sem sentido que atormentam mentes que queriam apenas um sonho que se sonha só.


Ah, e tem aqueles pesadelos que lembram fatos que queremos esquecer...sonos desgraçados. E fatos históricos que eram sonhos e se tornaram pesadelos, como aquele reverendo que sonhou um mundo onde brancos e negros fossem iguais, mas que por desejar a humanidade, foi assassinado.


O escritor Lima Barreto escreveu um conto chamado "O Pecado". Na narrativa ele revela o ódio racista  que persiste até no Céu. O guarda-livros que separava as boas almas das errantes não entendia porque P.LC.filho de...neto de...bisneto de...48 anos, trabalhador, caridoso e leal  não estava direcionado para a direita de Deus pai, até que o racista disfarçado de justiceiro viu que sua alma era...de um negro.


Isso é Barreto raiz, sempre denunciando os elos pesados, afinal ele sentiu no corpo e principalmente na alma o preconceito injustificável.


E como citei nosso gênio, em outro conto, Barreto traz a história de um indivíduo que viveu um "sonho" de curta temporada. No conto, um homem convive na alta sociedade entre orgias, cabarés e restaurantes caros na companhia de um novo amigo rico que pagava tudo. Certo dia o falso rico é desmascarado. Era um ladrão e larápio da pior espécie, mas nosso amigo não esquece os três meses de realeza. Seu sonho durou três meses.


Não posso esquecer daquele maluco beleza que disse certa vez que teve um sonho de sonhador, onde o mundo, inteirinho, parou...


Bom, pelo menos naquele dia os elos não estavam pesados pois ninguém saiu de casa, ninguém. Tem ainda os elos invisíveis, às vezes mais dolorosos que os de aço, são os   prisioneiros de mentes doentes.Como pássaros presos. 


O escritor uruguaio Mario Benedetti em uma entrevista apresentou uma pequena escultura de um pássaro com as asas abertas. Ele lembrou que aquele pássaro jamais voaria.


E eu que sempre quis ser contente trazendo para toda gente vontade de se abraçar (Geraldo Vandré), fico imaginando, ou melhor, sonhando, com aqueles dias que John Lennon e Martin Luther King sonharam. Curioso, para não dizer outra palavra, que humanidade é essa que assassina sonhadores da paz e da justiça  e tem tantos malditos para mandar para os subsolos da terra. Alguns imaginavam  "viver" todos os dias...vivendo, sim, só isso...imagine.


Incrível, lembro das palavras de Edgar Morin e Eric Hobsbawm e seus conceitos que até hoje não foram assimilados por boa parte da sociedade. Como revela a era dos extremos de Hobsbawm, temos tudo para sermos felizes, mas o nefasto está à espreita. Morin amplia para a era planetária, porém raízes do mal levantam as árvores pecaminosas de Adão e Eva. 


 Raça, escravidão, racismo e preconceitos estão nos debates atuais.


E pensávamos que depois da Segunda Guerra Mundial, a questão "raça" poderia estar extirpada ou pelo menos amenizada. Porém, basta ver o que aconteceu em Aparecida do Norte para sentir que o fascismo sobrevive.


Recorramos às teorias de Morin, Hobsbawm e aos contos de Machado de Assis e Lima Barreto. 


E dizer que Lima Barreto foi massacrado por uma elite que se considerava "francesa" num Rio de Janeiro com suas novas largas avenidas.


Como Barreto foi um feroz crítico dessa sociedade, o menosprezo da elite foi avassalador. É verdade que não temos, (e não precisamos de doutrinas perfeitas), mas há sim a necessidade de visões claras para diminuir o peso dos elos e correntes de aço. O tal "sentido da vida" é assunto recorrente e todo cuidado com o uso de nossas palavras é válido.


Wittgenstein revelou as multiplicidades das palavras e seus jogos de linguagem comprovam que cada vocábulo exige sua representatividade...cuidado...


Triste é ver narrativas inexatas sendo divulgadas aos gritos em nossos processos políticos. Pois é amigos, os bolsomínions de Copacabana são antigos e os elos seguem pesados...muito pesados...






Valdocir Trevisan é gaúcho, gremista e jornalista. Autor do livro de crônicas Violências Culturais (Editora Memorabilia, 2022) Para acessar seu blog: 
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