Quando tudo for possível, ou uma declaração, de Lisa Alves

 por Adriane Garcia___





Quando tudo for possível, ou uma declaração é uma obra poética que conta com a versatilidade da artista Lisa Alves, poeta que transita pela literatura e pelo audiovisual, levando uma forma artística à outra, sendo que, este livro, em particular, se caracteriza por tal trânsito potente e criativo. O livro é acompanhado por um áudio-book, acessado por código QR em que, mais que uma leitura ou interpretação dos poemas, na voz da própria poeta, o que há são paisagens sonoras, toda uma ambientação onde as palavras passam a habitar com os outros sons ao redor.



Lançado pelo selo Mirada, o livro é um capricho na edição, diagramado em um projeto que se identifica com a pedra, palavra reincidente dezenas de vezes no texto: “meu amor,/ tentei enviar uma pedra para você”. A costura – o alinhavo –também comparece como metáfora e como imagem, bordando com versos irregulares, trazendo um ritmo variado entre os poemas e nos fazendo caminhar por quatro estações, ou quatro sonhos. 


Já no título, há uma proposição no efeito visual, as palavras riscadas demonstram a impossibilidade de “uma declaração” ou um comportamento reticente quanto à definição do título. Da mesma forma, no subtítulo da seção “Quarto sonho”, encontramos riscada a frase “quando tudo for possível”, também dando a impressão de negação da possibilidade.


Começando pelo inverno, os poemas se apresentam sob o signo da frustração da experiência amorosa, da falta e do desejo insaciável. A dedicatória ilustra bem o que virá nessa primeira seção: “Este livro foi escrito/ por uma mulher/ que nunca existiu”. Com o primeiro sonho se dando na estação gelada, o que fica no cerne expressivo são a companhia amorosa, os elementos da cena urbana e contemporânea, a antítese quente e revolucionária: “era agosto/ e vimos o centro do Rio pegar fogo/ enquanto procurávamos algum lugar/ que vendesse o nosso café coado”. Seguir é um caminho de escolhas e, portanto, de renúncias. Todo o caminho que perfazem os poemas de Lisa Alves está povoado por aquilo que nos forma: lembranças, deturpadas já, porém tudo o que temos de verdade sobre nós. 


É de chamar a atenção o uso de muitas referências artísticas, principalmente do universo das artes visuais, do cinema e da música “¿Te gustan los tomates verdes fritos, mi amor?”. Lisa Alves trabalha a palavra como o espaço da fantasia para dar conta da dor de estar no mundo. Neste sentido, a poesia se situa como lugar privilegiado, já que é o gênero, por excelência, da reinvenção das palavras e dos seus sentidos: “penso na Lapa/ na Baía de Guanabara/ e na palavra amor /mas prefiro escrever Roma// (pois dói menos/ e inverter as coisas/ talvez seja uma espécie de fé)”, depois, a poeta substituirá “merda” por “madre” e concluirá que prefere a palavra “socorro”. 


Em Quando tudo for possível, ou uma declaração há uma atenção em dois focos preferenciais: o sentimento e as possibilidades que as palavras (em si) oferecem. O livro explora a poesia do pensar e do sentir. Comparecem imagens inusitadas a exemplo de uma “chuva de peixes”; aliás, o peixe é outra reincidência da coletânea, compondo mais um núcleo simbólico. Lisa Alves olha para os elementos à sua volta e para a paisagem em minúcias com grande sensibilidade: “ainda olho para a miúda árvore/ decifrando ausências/ medindo espaços/ e a escassez de folhas”.


Ao passar para a estação da primavera, a poeta trata da efemeridade. A beleza é vista com a desconfiança de que tudo é frágil e impermanente. O segundo sonho se dá na estação das flores e resume bem esse sentimento: “ou como a primavera/ pode ser destruída em um golpe”. Aqui, uma metáfora política de tempos em que as conquistas cidadãs estão ameaçadas e vão sendo perdidas; a política e o amor andando juntos; afinal, o amor está contextualizado no todo social, histórico, ético, também perdido na incomunicabilidade: “mas teu sussurro é uma esfinge/ e não entendo se é para ir ou recuar” e ainda “ou que duas mulheres simplesmente/ não podem/ Dos mujeres se comieron durante diez mil años”.  Nesta primavera de Lisa Alves, o amor se dá como direito ou como transgressão, mas nada pode detê-lo (o amor contextualiza-se, mas transcende toda contextualização). Há um movimento impossível de ser estancado – transformação – e a poeta demonstra isso nos recursos da língua, quando os idiomas se misturam e se mesclam: “Mira la primavera:/ merda, madre, dream.”


Chegados o verão e o terceiro sonho, comparecem frutos temporãos: “A gente sempre pode escolher./ O difícil é sustentar nossas escolhas.” As memórias de infância trazem de volta a sensação do calor e “os déjàvu” desse eu-lírico. Um certo desespero vem crescendo desde o inverno até aqui, na constatação do difícil exercício de viver, o viver sem qualquer receita, o viver como inexatidão: “dizem tantas coisas/ e eu já nem sei mais como existir”. Quando o quarto sonho preenche o outono, uma maturidade foi acontecendo pelas estações – cumpre-se uma trajetória de vida e há um quê de aceitação. Sonhar “a mão possível na pedra possível” invertendo o desejo que já sonhou a mulher impossível, o eu-próprio impossível. Abandonar as ilusões. A mulher (im)possível envelhece? A mulher (im)possível se torna um coletivo passando finalmente nos testes de realidade? Somente na palavra coexiste a maciez do encontro amoroso em antagonismo com a dureza da pedra (drummondiana, de obstáculo), mas também com seu caráter, se não eterno, durável. Entre a impossibilidade da mulher (do amor) ideal e a realidade da mulher (do amor) possível, alguém entrega uma pedra – e este gesto é humilde e soberbo. E este gesto é pura poesia.


uma mulher

sonha dentro de uma caverna


sonha

e pensa em possibilidades

sonha

e pensa em outras vozes possíveis

sonha

e pensa em outras mulheres possíveis

sonha

e pensa em um mesmo sonho possível


sonha e se lança

com a pedra possível

pelo buraco possível.






Lisa Alves (1981) é escritora e vídeo artista. Em 2015, publicou o livro de poesia “Arame Farpado” que ganhou uma segunda edição pela Penalux em 2018. Trabalha a sua poética em uma modalidade artística híbrida: imagem, performance, texto e som. Em 2020/2021 publicou as plaquetes “Quando tudo for possível” um híbrido homo-onírico-afetivo de poesia e vídeo-arte que em breve se tornará livro pelo selo Mirada. É redatora da revista literária La Ninfa Eco (Oxford, UK). 









Adriane Garcia,
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis).