Arborosidades I | Wellington Amâncio da Silva


por Wellington Amancio da Silva__





Existe coisa mais equivocada que transformar a complexidade de uma árvore na simplificação absoluta de um tamborete de assentar a bunda? Fazer da vida madeira, um osso duro de roer, ajuntar estruturas para edificar civilização — essa é a transmutação inútil de uma coisa viva em objeto de função provisória, que tendo presença na sala não se vê para além da sua pequena utilidade. 


A árvore, não. Antes de existir globo terrestre, nosso mundo era a copa cheia de uma árvore. A sombra é rica! Os favores de uma árvore para nós são mais extensos e profundos do que sabemos. Portanto, as arborosidades dizem respeito também à qualidade da sombra, que é o melhor de uma casa, senão a sua essência. Se a sombra é um tipo de “arco de teto”, uma proteção abstrata, apenas dentro dela e debaixo dela pensamos e habitamos. A luz é posterior; a sombra de uma árvore é a nossa sina, é o Lar. Com o fim do nomadismo (por causa dos frutos da arte feminina de semear o chão), buscamos a sombra para habitar. Naquele tempo, habitávamos dentro de estruturas rupestres, as cavernas, mas nosso interesse residia mesmo na sombra, que já conhecíamos (dentro da memória genética) desde as acolhedoras árvores em que vivíamos. Como disse, a melhor sombra — aquela de teor puro cuja seiva é encorpada — era a sombra das árvores. E se depois a parede da caverna fornecia uma sombra pedregosa, a sombra de uma árvore era ainda fresca, verde, colmada e fáunica, pois tinha e tem a feição, o odor, o sabor e a cor do húmus (“Nós viemos da sombra e à sombra retornaremos!”, disseram, mas não tenho certeza disso). De qualquer forma, uma sombra de caverna é dura, estável e monótona; a sombra rica de uma árvore é movente, oscilante, sazonal e sonora — seu tecido constitui-se de milhares de cortinas-folhas que se abrem e que se fecham segundo uma ordem misteriosa de zéfiros para nós, ainda bem. Com o tempo, para o bem na nossa sobrevivência subjetiva, aprendemos a diferenciar os tipos, sabores e teores de sombras.


Hoje, a pior sombra é aquela gerada por edifícios cinzas e muito altos: tal sombra é muito opaca, empoeirada, insalubre e quente. Não estou aqui fazendo uma simples apologia ao antiguíssimo convite dos macacos, isto é, de retornarmos para os galhos sombrosos de uma árvore, e com eles nos confraternizarmos, ainda que isto hoje fosse ecologicamente ideal e o que seria por demais interessante... Mas, não! Queremos mais, queremos reabitar a árvores pela Linguagem, queremos a sombra rica deste tecido que se escreve e se inscreve novamente em nosso ser. O que desejamos apontar é justamente para a arte de entender a arborosidade que nos cerca, ainda. Com efeito, a arborosidade é o referencial primeiro de mundo, sem esta não haveria o mundo, este mundo, a ordem e o que fizemos dele que é como é desde o período Cambriano. Se o Sol gesta a vida, a sombra é o cuidado, a mantenedora. A sombra é a mãe. 


Ainda do ponto de vista das epistemologias metafóricas, as arborosidades apontam à capacidade ou habilidade de ser/tornar-se árvores, essencialmente e num sentido ontológico, e de ser árvore tornando-se marco de alguma coisa ou de alguém, ser lugar mesmo de habitar para quem assim desejar, ser acontecimento para os afins e diferentes, sem pretensões. O nosso corpo arboroso ser o ponto de sossego na paisagem para alguém ou para os bichos — em outras palavras, o bom espírito humano é aquele que mais se aparenta a uma arvore, o espírito arboroso, que busca ser tal a uma árvore bonita, sem grandes interesses no aqui e agora, apenas viver e ser sombra. 


Ora, a boa sombra tem a capacidade de convidar para habitá-la, nela não reside somente a fauna de bichos, elementos abióticos e uns fantasmas das antigas que nos ajudam, há gente dentro dela, sobre e sob a sombra. Não obscurece, mas desvela, é a mãe do φαινόμενο, porque a sombra é como um extenso fio de Ariadne que ao fim do labirinto da existência todas as coisas se mostram, segundo nossos bons esforços. E, a primeira substância aristotélica de uma árvore, sua arborosidade, é a ser dotada de uma sombra rica e complexa. Quando se diz Aufklärung se diz que a busca iluminista em sua essência se realiza na fundura de uma sombra fica e complexa, de pé ou sentado, de onde se pode pensar e escrever, tendo posse de livros ou não.


Desocultar o objeto pela referenciação, e precisar a referenciação à sombra, numa hermenêutica possível, acessível e porosa. Se no Ocidente a hermenêutica se consolidou como o modo de interpretar, significar, representar e apresentar a coisa dando-lhe nome, no cerne de certa taxonomia, e depois objetivá-la para o entendimento, dentro de um sistema de vontade científica, a hermenêutica das arborosidades propicia um descanso aos sentidos outrora saturados das coisas, de modo que possamos entender o mundo pacificamente, isto é, sem intrusão, exploração e mortificação das coisas, que possamos nos entranhar entre os galhos através de uma diversidade paradigmática despretensiosa. À sombra haverá descanso. A sombra é rica. Não faltarão frutos para ninguém. O discurso científico oficial e a altíssima literatura não poderão avançar eternamente sobre a ramagem da vida arborosa!


A hermenêutica das arborosidades é para tudo dar guarida, e no sossego deixar as coisas dizerem o que sãos, deixar os bichos falares, os seres humanos contarem — permitir a natural enunciação das coisas por parte das coisas (porque estas ainda não receberam um nome, tais aos objetos, ainda estão vivíssimas, conectadas à holística da Vida). Assim, durante todos esses anos nos perguntamos, “Por quais olhos ou lentes olhar?”. É preciso ter cuidado! Na Modernidade, a ideia empobreceu a ver-dade das coisas (pela troca do conceito de sentidos em detrimento da experiência da presença); na Contemporaneidade, agora mesmo, todas as coisas dançam xaxado conosco, numa orgia dionisíaca que pode causar ressaca depois da festa, para o bem ou para mal. Todas as coisas perpassam o corpo, agora, todas essas coisas naturalmente sacras, naturalmente devotadas a si mesmas, antes  singularizadas como “elementos periféricos ao corpo”, de fato sempre estiveram intimamente conectadas ao nosso corpo, inerentemente (e aquela investida à coisa-em-si kantiana, essa incógnita metafísica sem sombra, é ainda hoje tida como quase gospelizada); resetaram talvez  a experiência das coisas a um início obscuro, sendo que a medida arborosa é ainda pluralizar a tradição, escutando todos os arborosos marginas, todos os arborosos ribeirinhos, caboclos, quilombolas, indígenas, bichos grilos, multissexuais, punks, raulseixistas, qualquer um com sua Visão de Mundo & Conhecimento. À sombra cabe todo mundo. O paradigma é aberto.


Na vida real domina ainda o monolito negro de “2001, Uma Odisseia no Espaço”, esse objeto cientifico e ferramenta em si mesma de extrair da Natureza um negror duro e sem vida, profetizado por Francis Bacon, medida dos nossos atos lógicos e onde hoje habitamos. Por causa disto, dada a fé oficial na ideia de uma coisa, os homens destroem a presença esta coisa, porque o que eles mais desejam quanto mais desejam é o “efeito químico” dentro do cérebro desse amor pelo desejo em si da coisa, sendo que esta é desvirtuada da sua experiência, para além do seu sentido mesmo e da sua presença entre nós: é uma simples “transferência de interesses”, num tipo de alienação desejada por Narciso, como se desejasse estar dentro da ideia vazia do objeto do desejo que vivenciar sua coisidade.


 Não resta nada, somente o termo, a ideia, o conceito, que não enche o bucho nem a alma de sentidos dignos de vida. Por isso um chamado agora à utopia transformer. É analógico nosso envolvimento com a Literatura. Um envolvimento arboroso.







Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É músico multi-instrumentista e produtor musical. Publicou-se: Ontologia e Linguagem (2015), Pensar a Indigência com Michel Foucault (2018), Gumbrecht leitor de Heidegger (2019) e Conceito de modo de convivência (2018), além de dezenas de artigos científicos. Em literatura publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001). Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca.