Quatro poemas de Joaquim Cesário de Mello

 por Joaquim Cesário de Mello__





POEMA DO INDIZÍVEL



Não sou poliglota 

mas sei a língua dos homens


Domino o dialeto das ruas

as gírias dos bares e das esquinas


Trago em mim 

todas as palavras do mundo


Conheço os Cânticos de Salomão

os segredos de Skakespeare 

os heterônimos de Pessoa

os épicos de Homero

as canções de Camões

os quartetos de Eliot

os sonetos de Petrarca

a simbologia de Verlaine 

e a rebeldia de Rimbaud


Já percorri todas as livrarias

e li todos os livros de Alexandria


Mas não consigo transpor em poesia

o deslumbramento que me dá

quando de te vejo assim distraída

passando por mim como se fosse

uma tarde morna de domingo



O MENINO E O VELHO



Para onde foram os velhos da minha infância

que hoje já não os acho mais?


Cadê aqueles senhores calvos 

que fumavam cachimbo e cigarros de palha

alguns andavam por aí em ternos claros

usando gravatas de borboleta ou listradas

que não combinavam com as camisas suadas?


O que foi feito das minhas tias e avós

com seus cabelos enrolados em bobes

aprisionados em berilos por debaixo

dos lenços e toucas que se tinha nas cabeças

e que agora não as encontro mais?


O que aconteceu com as cadeiras de balanço

feitas de madeira e palinha

em que as tardes se sentavam ouvindo rádios

e que nos playgrounds atuais não vejo mais?


Nos tempos em que aqui vivo

meus velhos estão nos espelhos dos banheiros

nos quais escovo os dentes e aparo a barba grisalha 

e depois me arrumo para o dia onde os jovens estão

brincando, na escola, namorando e indo pro trabalho


Queria de volta minhas antigas paisagens

em que habitavam meus velhos

e onde tudo era completo de eternidade



SE EU FOSSE OUTUBRO




Se eu fosse outubro

Me vestiria de verde

Pigmentando as paredes das casas

Da cor felina das esmeraldas

E enfeitaria os cabelos de gardênias

Penteando-os com caules de flores


Se eu fosse outubro

Limparia o céu com o algodão das nuvens

Afastando o cinza para o ano que vem

E o deixaria mais azul que o azulado

Que ainda trago em mim guardado

Nos conservados sonhos juvenis


Se eu fosse outubro 

Todo dia tomaria banho de mar

Ficando molhado de sal

Retirado das águas amornadas

Que antecipam a quentura do sol

Que acompanha a caloria do verão

E mordida das moscas vindouras


Se eu fosse outubro

Ia chupa caju e depois

Comer pastel de queijo 

Com caldo de cana

Na barraca de Dona Maria

Que fica naquela esquina

Onde se encontra a rua do mundo

Com as intervaladas calçadas da vida

 

Se eu fosse outubro

Ia sair passeando por aí 

Esverdeando a superfície do chão

E me encontrar por acaso

Com o amor que vou amar

Pelo resto das nossas vidas inteiras


Se eu fosse outubro

Seria outubro infindamente


COMO DISSE CÍCERO DIAS*




Não sou judeu ou palestino

ariano, asiático ou caucasiano

eu sou brasileiro e do Brasil

eu sou é muito nordestino


Do Nordeste não sou baiano

cearense, potiguar ou paraibano

eu sou pernambucano e de Pernambuco

eu sou feito de mar e de mar

eu sou é muito litorâneo


Meu litoral é recifense

e de todas as águas que lhe são adjacentes

e se até hoje não morri afogado

é que aprendi a boiar sobre sal e sargaços

e a nadar pegando sarrabulhos 

perfurando vagas e ondas ziguezagueando 


Atravessei tardes como quem atravessa pontes

e sobre pontes atravessei madrugadas

que em Recife são mais prolongadas

feito rios banhando siris, camarões

caranguejos, guaiamuns e oceanos


Sou mameluco, caboclo e mulato

sou do bairro de Santo Amaro

das ruas do Sossego, da Aurora, 

da União, dos Palmares e da Soledade

sou do Parque Treze de Maio

e do cemitério central da cidade


Se Deus for brasileiro

é nordestino e pernambucano

e o mundo nasceu no Recife

e todos somos recifenses

alguns apenas ainda não sabem 




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(*) Cícero Dias (1907-2003) foi um pintor pernambucano, desenhista e ilustrador brasileiro, grande representante da pintura modernista do Brasil. É autor do painel “Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife”, obra que irrompeu o cenário modernista no país.








Joaquim Cesário de Mello - Psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (Universidade de Toulouse, França, 2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996), Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra & Arte, 2021). Em final da década de 80 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi cronista do Encarte Cultural do Jornal do Commercio (PE) entre 1998-2002. Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral, 2003), A Alma Humana (Labrador, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador, 2022) e No Cemitério das Nuvens (Folheando, 2022)