Três textos em prosa poética do livro Ruído nos Dentes

 

por Vivian Pizzinga__




viga-mestra

 

coleciono noites. olho aberto deslizando impune sobre prateleiras, livros, cinzeiros, hélices de ventiladores, olho aberto avançando sobre os escombros do que sobrou do dia. há certa mudez ressoando nos quadriláteros adjacentes à sala estupidamente calada. coleciono delinquências íntimas no caminho do baixo ventre, eloquência insuspeita que não deixa pistas, caminho borrado das 3 da manhã ou mais. coleciono horas mortas em dias úteis, escassas tardes no que há de ar nos pulmões, e é quase nada. coleciono asfixias, apneia viga-mestra num punhado de hesitações, olho aberto percorrendo a dúvida, vida esporádica percorrendo o chão. na contabilidade dessa vigília endêmica, é dia sim, dia não que se dorme. coleciono olhos abertos em seu escrutínio pela noite desprovida de bordas, avermelhadas pupilas de quem há muito se perdeu do caminho do sossego. e note: nenhuma gota a mais resolve o impasse. coleciono solilóquios. deslizes. dias amanhecendo em qualquer época do ano.

 

coleciono ecos.




*

azia

 

minha língua:

hospedeira de um gosto de cobre imemorial.

o tempo pausou esse insistente paladar.

há algo de errado rodeando os dentes

rangê-los não basta.

moléculas estrangeiras se espalham na boca

angústia parasita que sabe de cor a cartografia

de túneis orgânicos insuspeitos.

o bicho sobe do peito à garganta

quica nos arredores da goela

navega na saliva espessa

instala-se na fofa gengiva pálida.

o bicho metálico forma um cuspe azedo

que lanço no chão gelado

é inverno.

volto a sentir sede

mas beber água não basta.

o gosto de moedas velhas persiste

a náusea exala cheiros.

azia é a roupagem de um drama que falho em nomear

 

 

*

vai, guarda a palavra, guarda a palavra, guarda a palavra, transforma em tosse, guarda a garganta, vai, encerra as mãos nos bolsos do casaco preto. vai, guarda a palavra. não é possível dizer tudo. não é possível dizer de uma vez. não é possível dizer. vai, encerra tua frase. engessa tua língua, espessa saliva. emperra o discurso, que lá alguém, bem dentro, tudo breu, algum terreno, baldio céu, alguém. cerra tua boca, cospe teu dito, engole teu verbo, macio véu. guarda a palavra, bole teu eco mas beija o sentido, com toda força, beija o sentido, esgana tua face que lá, bem dentro, vazio breu, de costas e sem vísceras, alguém te escuta.







Vivian Pizzinga lançou Ruído nos Dentes (Urutau, 2022, poemas) e os livros de contos ‘A primavera entra pelos pés’ e ‘Dias roucos e vontades absurdas’ (Oito e meio, 2015, 2013). Publicou em revistas literárias, como a Lavoura #7 (2022, impressa), a revista lusa online InComunidade, além de textos em coletâneas como Escriptonita (Patuá, 2016) e Cada um por si e Deus contra todos (Tinta negra, 2016). Foi finalista do concurso de contos Cuéntame um cuento, 2020, da Universidade de Salamanca em parceria com o Museu da Vida, da Fiocruz, e finalista ainda da categoria Crônicas do Prêmio Off-Flip 2022. É psicanalista e tem mestrado e doutorado em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina Social da Uerj).