Três trechos de O duplo refletido, de Lorraine Ramos Assis

por Lorraine Ramos Assis __





1


No Brasil, século dezenove, discutiam sobre a mulher gozar dos mesmos direitos da herança no decreto 181. Obstáculos não mais existiam, mas sim uma arquitetura de um mesmo sobrenome a desfrutar os direitos dos filhos.  Não importava a decisão profissional de nossos companheiros, ou a educação dada a quem foi parido nesses mares. Na França, os obstáculos eram garantidos pela confiança na organização hierárquica com barras.

Barras memoram prisões.

Quero sair desse cômodo e nunca mais voltar. Olhar para a face fluvial do mirante azul, a que reconheço desde os afogamentos. Entoar o que me tornaram e falar a língua daqueles a terem me conferido induções dramáticas. Sempre gostei  ou melhor, me forcei  a ser o palco. E no palco exprime-se imagem e essência, confundindo o telespectador como coautor dos malabarismos linguísticos. E assim fujo.

Polida: se minha fala está feita de extravagâncias, conjuntas às maiores obsessões, na vida sou um silêncio para quem a face é demolida tal qual um imóvel ou um espólio de antigos maridos.


2


Onde eu estava?


Eu não me lembro.

eles fatigam meu nome, mas não me lembro.

Lili.

Parei. Pensei na própria regata preta e no canal revisitado perto da lanchonete. 

As vias estavam obstruídas, não havia mais caminho a ser percorrido.

Lili.

Lineia.



Era esse o meu nome?


Flor de tulipa rasgada, libero o pó para que saiba

Ainda vivo

Mesmo não sabendo onde

Amnésica

Caminho sem mais mastigar a barbárie

Recordo-me a perpétua luz projetora do futuro daquele que me disse


Somos todos sonhadores. Mas quem está sonhando?


3


sentindo o ar preso em corpo de perpétua fuga 

consegui fisgar um semblante de madeixas pretas nariz adunco

o olhar a que chamavam


a doçura enigmática fora do escudo marmorizado


contudo a garota (ou qualquer coisa a ser) contornava tanto os seus gestos que as madeixas por desespero foram cortadas uma a uma e essa pessoa de tanto assinar e esconder o último sobrenome daquele homem sentia não existir mais


se ela não sentia nada desde tenra idade


quem era eu, afinal?


Lineia

Ou 

Lyna?







Lorraine Ramos Assis (@catarsesoculares), de 26 anos,  é poeta, resenhista e editora. Foi publicada em diversas revistas/jornais nacionais e estrangeiros, tais como Jornal Cândido, Cult revista, Relevo, Granuja (México) e Incomunidade (Portugal). Colabora para São Paulo Review e Revista Caliban, além de integrar o corpo de poetas do portal Fazia Poesia. Pesquisa sobre a marginalização feminina em obras ficcionais/biográficas. “O duplo refletido” (Folhas de Relva) é seu livro de estreia.