Poesia, saúde pública, interseccionalidade e pandemia: uma entrevista com Janaína Steiger

 por Divulgação___






“Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública” (132 pág.) é o livro de estreia em poesia da psicóloga, trabalhadora do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e especialista em Saúde da Família e Comunidade Janaína Steiger (@janasteiger). Originalmente um Trabalho de Conclusão de Residência na especialidade de Saúde da Família e Comunidade, o livro aborda de maneira poética o cotidiano da saúde pública numa interlocução entre literatura e vida real. 

A obra foi construída a partir de teorias e práticas vivenciadas pela autora durante o período de pandemia da covid-19 e é apresentada na forma de poemas, estabelecendo um importante diálogo entre psicologia, saúde pública e poesia. Com orelha assinada pela escritora, artista e arte educadora Agda Céu, e prefácio do professor, pesquisador, pedagogo e doutor em Educação Elisandro Rodrigues, “Olhos em vírgula” tem como seus temas principais a rotina profissional dos trabalhadores da saúde, a pandemia e suas consequências e os desafios da saúde pública, sempre levando em conta a interseccionalidade. 

Nascida em Porto Alegre, capital gaúcha, Janaína atuou, de 2020 a 2022, numa Unidade de Saúde da Atenção Primária ou, como é afetivamente denominado, “postinho”. A escritora aposta na interlocução entre a escrita e a psicologia, assim como a psicanálise e as políticas públicas. Junto delas, valoriza o diálogo com as demais formas de expressão da arte, em especial a fotografia. Janaína é uma mulher cis, branca e bissexual, e é a partir desses lugares que escreve, priorizando, como referências, autoras mulheres, negras e LGBTQIA+. É coautora do livro “Cidade Cinza” (Editora Metamorfose, 2019) e possui poemas, crônicas e contos em diversas coletâneas. Além disso, integra a equipe de poetas do portal Fazia Poesia.

“Olhos em vírgula” é o primeiro livro lançado pelo NADA∴Studio Criativo no formato phygital — que existe simultaneamente nos formatos físico e digital, com tiragem limitada. Trata-se de uma aposta no ecossistema de criptomoedas como alternativa de viabilização financeira no mercado editorial — um primeiro experimento do NADA (híbrido de ateliê de criação multimídia, produtora cultural & editora independente) utilizando a blockchain NEAR Protocol visando obter mais transparência tanto da distribuição quanto nos processos de produção dos livros, assim como na utilização de criptomoedas para compra de livros e no financiamento de novos projetos editoriais. 

A tiragem inicial será de 200 exemplares, sendo 100 exemplares distribuídos gratuitamente para serviços de saúde e bibliotecas comunitárias da cidade de Porto Alegre (RS), e outros 100 exemplares serão comercializados pela editora. Quem optar por comprar a versão NFT terá direito a solicitar o impresso e vice-versa.


Confira a entrevista completa com Janaína Steiger:

1 - O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

A escrita do livro foi motivada pelas lacunas de palavra e sentido da experiência de ser profissional da saúde atuando no setor público. Lacunas estas que se alargaram durante a pandemia de covid-19. Nos diziam “linha de frente” e eu enxergava uma linha vazia de uma caderno em branco. Precisei escrever. Pra fazer da palavra e do meu corpo, linha. Com o intuito de tentar transmitir algo - tecer remendos - daquela experiência de ser vetor de transmissão e heroína, salvação e risco. Risquei. A cada dia, eu colhia palavras, frases e afetos do cotidiano na Unidade de Saúde, e as guardava. Nas cadernetas que sempre carrego comigo, como fragmentos vivos em meio a anotações duras. Ou nesse espaço entre o corpo e a folha, em que muito foge e algo fica - ora se alarga, abraçando a mão que se põe a escrever, ora se estreita, torce, ao ponto de respingar palavra no papel. 


Nesse torcer-se e alargar-se, alaguei. E a partir desses restos cotidianos de linguagem e imagem, me percebi escrevendo uma narrativa, um percorrido pelos diferentes espaços de um serviço que frequentei por dois anos. Foi durante esse período que a maior parte da escrita se deu, em frequência instável mas constante, nos tempos da urgência do sentir - e dos prazos, também. Afinal, a escrita inicialmente tomou forma de trabalho acadêmico, enquanto marco da conclusão da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade. Já tinha o formato de verso, e levava no título uma questão-afirmação: “Pode poesia no posto?”. 


Era essa pergunta que me levava a escrever, junto da urgência de contribuir para a construção da memória e história de uma pandemia sintomática, que expôs e exacerbou as mazelas sociopolíticas-econômicas do Brasil - para falar apenas a nível federal. E assim, deve ser lembrada, para não se repetir.

2 - Quais são as suas principais influências literárias? Que livros influenciaram diretamente a obra?

Entre as minhas influências, estão Conceição Evaristo, Aline Bei, Manoel de Barros, Ana Martins Marques, Viviane Mosé, Agda Céu e Luna Vitrolira. Os livros “O humano do mundo”, da Débora Noal, “Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS”, da Júlia Rocha e o “Livro sobre nada”, do Manoel de Barros são referências diretas para “Olhos em vírgula”.

3 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?


Saúde pública, interseccionalidade e pandemia de COVID-19. Escolhi esses temas devido ao contexto socioeconômico político atual e à urgência que se fez no corpo. Eles não aguentam mais ouvir falar em pandemia. Eles nunca toleraram as discussões críticas relacionadas a gênero, sexualidade, raça e classe social. Eles não suportam poesia. Por isso.

4 - Como você definiria seu estilo?

Acredito que a minha escrita é uma escrita do cotidiano, que alterna imagens e lacunas, o factível e o sensível, o macropolítico e o singular. Ora sussurra, ora grita.

5 - Como é o seu processo de produção?

Eu escrevo todos os dias. Quem trabalha na ponta, nas políticas públicas, normalmente trabalha, também, escrevendo. Relato de atendimento, ata de reunião, anotação de discussão, evolução de acompanhamento. No consultório, onde também trabalho, a escrita segue presente, noutro formato, mas sempre ali. Notas, fragmentos.


Eu conheço e escrevo histórias de vida todos os dias. O que poderia ser ótimo pra conseguir escrever fora do trabalho, também. E no fim, é. Mas no meio e durante, admito, é muito difícil. Eu preciso de tempo pra distanciar, decantar e, aí sim, escrever. E quando vem, por vezes não há espaço, não há tempo. Assim, me apoio nas notas, perdidas na agenda e cadernetas e, quando possível ou urgente, vou em busca delas, numa caça às palavras. 

6 - Você tem algum ritual de preparação ? Tem alguma meta diária de escrita?

Ainda não consegui construir um ritual de preparação para a escrita, de forma prática e metódica. Tampouco uma meta - tenho uma certa alergia a essa palavra. Sei que ambos funcionam para muites. Pra mim, no entanto, a meta espanta o desejo e sem desejo não há escrita. Meu tempo é o da urgência do corpo e, se tivesse que nomear esse processo, diria que o meu ritual começa pelo angustiar-se, comumente à noite, em quase madrugada. No desabar do corpo. No pesar dos olhos. Com a cidade em quase silêncio, silencio também o celular - a parte mais prática do processo. Com sorte, me escuto. Com urgência, escrevo.

7 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?

É muito difícil precisar quando comecei, e acredito que o sempre me contemple. Os clássicos diários escritos à mão, um livro iniciado aos 10 anos, e crônicas na adolescência. Eu admirava muito uma conhecida escritora que publicava crônicas num jornal famoso da minha cidade. Lembro de levar um livro dela para uma aula de literatura e a minha professora o classificar de “literatura de shopping”. A escritora era branca e de classe média alta. Eu valorizo e acredito no lugar de todos os gêneros literários, sem hierarquização, mas senti aquele comentário como um primeiro tapa na cara. Eu precisava ler e escrever com o meu corpo e a minha realidade. E ir além deles.


Se tenho dificuldade de dizer sobre o começo, no entanto, consigo dizer com quase precisão quando parei. Exatamente no período que iniciei a faculdade de Psicologia “um curso para quem gosta de ler”, que ironia! Lia os artigos e livros, formatava minhas palavras à la ABNT e não vislumbrava brecha para a leitura ou escrita de literatura. 


E lembro, também, do recomeço. Logo após regressar de um semestre de intercâmbio da faculdade, a fresta: alguns meses de desencaixe do  semestre acadêmico, que me permitiram uma nova aproximação com a escrita, bem como a minha primeira participação numa oficina de escrita. A partir dali, também, consegui não mais tomar a faculdade como obstáculo ao escrever, mas fazer a psicologia dialogar com essa forma de arte. Hoje, me parece impossível dissociá-las. 

8 - Quais são os seus projetos atuais ? O que vem por aí?

Atualmente, estou realizando o Curso de Formação de Escritores da Metamorfose, um espaço que promove cursos e oficinas. Nele, tenho me aprofundado em diferentes gêneros de escrita, como a de narrativas curtas e longas, suscitando o desejo de publicar um romance. É um projeto muito embrionário, ainda, mas que tem ganhado força.


Além disso, em 2022 comecei a trabalhar na política de Assistência Social, num CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), espaço que muito tem me inquietado e produzido questões cotidianamente. Tenho muita vontade de desenvolvê-las num futuro projeto de Mestrado, bem como, quem sabe, um novo livro, em continuidade e diálogo com o “Olhos em vírgula”.







Janaína Steiger  (@janasteiger) nasceu em Porto Alegre/RS. É escritora, poeta, psicóloga, especialista em Saúde da Família e Comunidade e trabalhadora do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Aposta na interlocução entre a escrita e a psicologia, assim como a psicanálise, as políticas públicas e a arte. Janaína prioriza, como referências, autoras mulheres, negras e LGBTQIA+. “Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública” (132 pág.), publicado pelo o NADA∴Studio Criativo, é seu livro de estreia.sofridos com a desnutrição e a estiagem.