As vísceras da tulipa, um conto de P. R. Schneider

 por P. R. Schneider__






Dezenove horas e eu ainda estou em casa como se o mundo fosse meu. Eu não sou minha própria patroa coisíssima nenhuma, sou mesmo é minha própria escrava. Meu batom anda tão barato…vou pensar em pedir na revista um melhorzinho. O leite das meninas tá acabando também e como é que paga leite, bolacha e batom? E agora Vitória quer ir pro ballet e tenho que comprar a roupa pra ela dançar, e tem que ficar bonita. 

Me sinto enjoada demais desde a manhã. Ando observando o mundo de um jeito esquisito, como se cada coisa que estivesse sobre a terra me desse uma sensação…diferente? Não consigo decifrar direito o que acontece. 

Acordo muito cedinho para ir na padaria e comprar o pão das meninas antes delas irem para escola, todos os dias faço a mesma coisa. Já voltando da bodega com o pão na mão, olho se tem muita gente na parada de ônibus, logo eu também preciso pegar a condução e ir fazer diária. Chego em casa, acordo as meninas, ponho café no fogo, arrumo elas bem direitinho e levo para a escola.

   Hoje não, hoje foi muito estranho. Está sendo. Não quero me levantar, não quero comprar pão, nem acordar as meninas, nem levá-las para escola, nem nada. Só não quero olhar minhas desgraças de perto, de forma tão próxima que seja possível tocá-las sem erguer as mãos. 

Fiquei deitada. Silenciosa, observando os fios de luz entrarem pelas telhas quebradas e escorrerem pela parede sem reboco, caindo sobre mim, melancólica, sobre meu cadáver espalhado no lençol fininho do Pio Pio. Esse lençol foi presente do Cláudio, pai da primeira, Vitória. Ela foi feita aqui mesmo nessa cama de tijolo. Mas hoje eu não estou nem feliz por ter tido filho e nem triste. Não sei que palavra se dá a não vontade do não sentir. Não me decepciono e muito menos me surpreendo. Não posso chorar porque não há tristeza, nem rir pois seria falso da minha parte. Quero ficar na cama e me acovardar do mundo, não ver o sol, nem o canal fedido passando aqui do lado, nem a vizinha cobrando o aluguel, nem o ônibus sufocado de gente. Quero este silêncio que reina sobre mim; que me apequena a ponto de meu corpo ser um cisco incomodando o destino.

  O sol continua subindo e minha vontade de levantar morrendo; morta-viva, preta-pálida, cadáver-de-mãe-solteira; qual seria a manchete se me encontrassem aqui? Mas eu não estaria morta, logo iriam verificar meu pulso e constatarem "ela está viva?". E meu corpo inerte diria o contrário, e ele, o corpo, como que respondendo o legista diria "ela nunca esteve". 

E Vitória? E a pequena Rebeca? As meninas ficariam sozinhas nesse mundo cão. Sem mãe nenhuma, se elas pelo menos tivessem uma avó. Toda criança devia ter uma avó, é mãe duas vezes! 

Fiquei deitada, estou aqui, acolá, às vezes indo e às vezes voltando. Meu corpo bailando petrificado na cama, olhando para esse imenso nada através de todas as frestas do telhado, as frestas de todo o universo me chamando e fazendo minha alma ir caindo para o alto.    Tenho muito medo de morrer, e não digo isso na rua, é perigoso dizer que se tem o que é inelutável. Dizer o que se teme em voz alta é atrair o próprio medo. Agora eu já não tenho mais medo da morte, sinto que as frestas das telhas me dizem que a morte observa por entre elas mas não devo temer; ela me acompanha em silêncio, me vela nas noites de trabalho, chora quando eu choro, ama quando eu amo e num dia de cores sólidas vai me beijar. Pretendo morrer sem deixar rastro, morrer com sangue é tão sem originalidade, faz tudo parecer macabro e ainda deixa trabalho para quem fica. Vou morrer sem sangue, súbito. Puf. Foi-se. Uma paz inominável; ainda assim uma paz morta. Tal coisa-não-viva. Não tenho tempo para que a morte me desperte e ergo da cama ainda com suor na testa refletindo no espelho gasto diante de mim. Aquela mulher igualmente sem nome fitando-me com seus lábios cerrados, grossos e sem cor. Peguei a chinela embaixo da cama desejando que lá não estivessem e assim usasse de argumento  para não começar meu dia; direi então que atrasei e não levarei as meninas na escola. 

  As levarei à praia! Olharemos o mar, ficaremos na areia quente, posso comprar picolés para as duas e montar um castelo de areia e assim nossos corpos cansados do ônibus se fundirão a cada grãozinho minúsculo que compõem a imensidão do que é a praia. Me sentirei como na infância: com as costas ardidas deixando o vento cortar a pele queimada de sol e fazer-me areia, ser uma parte inquebrantável da força das ondas e das eternidades de que são feitas as areias do mundo. Acho que as areias do mundo são fragmentos ínfimos do que já foi, do que é e do que será. Todas as coisas do mundo são areia, das mais belas as mais feias, das mais ricas as mais pobres, cada homem e cada mulher. Somos areia na eternidade, cheias de uma minúscula eternidade que foi dada com a junção da finitude que ainda assim se mostra gigantesca diante do nosso tempo-humano. Contar o tempo é uma escolha humana, uma errada escolha humana. Para não dizer uma burrice.

    Não fiz o café, não comprei pão, não arrumei as meninas para a escola. Peguei as duas, botei numa roupinha de sair e fomos para parada de ônibus, rumando para a praia. Rumando uma estrada de chumbo espessa e quente para qualquer lugar que tivesse um sinônimo de liberdade. Tudo aquilo me dava uma ânsia pela vida como em muitos anos eu não sentia; meu corpo se dava conta do sangue e do coração pulsando. 

  Vitória não perguntou porque iria faltar a escola, não estava animada e nem mesmo desgostosa, indiferente. Rebeca gritava animada para subir logo no ônibus e rumar comigo o caminho mais desconhecido que vira nos seus primeiros 5 anos de vida; por ela eu diria então que vale a vida o valor do sorriso que tem uma alma jovem. Esperançosa das cores que ainda não descobriu. Minha cor predileta é vermelho, o vermelho dos meus lábios a noite dão um ar novo neste corpo cheio de hematomas sem tom. 

   O ônibus rosna abrindo suas portas, até disso a pequena sorri. Rebeca passa por baixo da catraca sujando de leve seu vestido novo, digo novo porque foi comprado para o último natal e estamos no meio do ano seguinte. 

Já o corpo de Vitória era mais rígido que o meu. Pois num é que a mulher é braba! Sequer fazia careta quando o ônibus dava um salto no quebra-molas. Ela se construía em silêncio comigo, como se preferisse estar na escola. Compreendo ela não querer ficar na minha presença, ainda existem ruídos nas nossas conversas, quando elas existem. Vitória guarda uma memória do pai diferente da minha, ela sente como se eu a tivesse levado da vida de Cláudio mas não foi isso, nem um pouco isso! Ele teve seu momento de afeto e logo depois se mostrou a pior pessoa que eu já dividi uma cama, levando em conta meu trabalho, não é surpreendente conhecer pessoas horríveis, só que ele tinha uma maldade refinada, uma voz meio muda capaz de desferir golpes duros, maligno jeitoso. Comentários desconectados, fora de contexto e velados por uma vontade genuína de magoar e diminuir.

   Chegamos na praia com os olhos fixos no horizonte azul, com as cores de minha infância, que não desbotaram nada: areia, água, barracas, sol, nuvens, tudo. Chamo de liberdade o fato de nossos três corpos atravessarem a areia escaldante e se chocarem nas ondasdo mar, do mundo. Sim, liberdade porque desconheço algo que defina melhor a materialização do que é não estar preso ao chão ou a vida; desprender-se numa contínua guerra entre o humano e o sobrenatural. Sem trégua para as necessidades disformes de minha alma impelida contra o corpo magoado, ofegante, fazendo o espírito se dilacerar. O espírito que não voa pois não tem memória de suas asas, um corpo que não se move por que não se lembra do que é estar vivo. Na vida morre-se mais vezes do que se é capaz de ressuscitar. A distração perfeita para o universo.  

  Segure minha mão, Vitória, tome minha mão e me tire do mundo. Segure minha outra mão, Rebeca, me leve além do que eu posso prevê, uma terra estrangeira para meus pés doídos, um ar indescoberto para minhas asas podadas. Por isso se educam as crianças, numa tentativa animalesca de domesticar o instinto que permitiria a liberdade tomar forma; a gente entra no mar de roupa se escondendo do sal e do sol, temos o falso pudor pelo o que é mais real que minha própria existência ou a de qualquer outro ser preso neste planeta. Tirei meu biquíni, pedi que Vitória o fizesse e Rebeca logo repetiu minha contravenção. Ficamos nuas para o mar, e deixamos o sal tomar nosso corpo por inteiro; creio que o útero de minha mãe era salgado. Olhando-as livres me faz desejar a vida como nunca, permite que meu espírito se encerre neste corpo, se finque como raízes perfurando uma calçada. Meu útero tem sal? Estou agora presa ao instante, a este momento que não é sublime e nem mesmo sagrado, são apenas nossos corpos se diluindo na espuma do mar, perdidos na imensidão sem estranheza para com as ondas. O agora. Este. Que torna-se este agora e não cessa. No ciclo de agora, agora e agoras. Não estou interessada no pregresso ou no amanhã. Eu quero o hoje sem espera, em uma definição imprópria do agora.

 Diante do espelho o batom está rubro-vivo, meus lábios de onça são muito bonitos sob essa luz amarelada. Vitória e Rebeca dormem, metidas nos seus sonhos-mundo. Ponho o salto prata com a ponta gasta, pego a bolsa e o bilhete do ônibus, me vou. Não tem lua hoje, como ontem também não tivera e amanhã talvez seja só o reflexo do poste me dando um tom pálido. Sem movimento na rua. A madrugada sagrada das damas. Esse cigarro tem um gosto azedo, era o mais barato. A semi luz banha meu rosto bronzeado e salgado de mar, eu estou feliz por ser hoje uma companhia grelhada, temperada. Isso não é liberdade. Mas é o agora, sem dúvida. E o agora exige muito. Vou trabalhar hoje, amanhã e depois. Comprar uma casa boa e enfeitar a mesa de jantar com tulipas iguais às da revista, observá-las até gastar a cor e chamar aquilo de que existe entre o sereno e o caos de vida.




P. R. Schneider - Eu existo. Isso é o suficiente.