Nave alienígena | Divanize Carbonieri

 

por Adriane Garcia___





Estando às voltas com a leitura de Nave Alienígena, livro de contos de Divanize Carbonieri, não pude deixar de pensar o quão notável é o que esta geração de escritoras brasileiras – as que escrevem na contemporaneidade – tem feito de forma qualitativa e quantitativa: registrado como nunca o seu olhar sobre o homem. Não o homem romântico, o homem que faz as mulheres – tão frágeis e apaixonadas por eles – arfarem e desmaiarem sob qualquer emoção, mas o homem real diante de mulheres reais. Pois só o homem real pode explicar as estatísticas de violência doméstica, estupro e feminicídio em nosso país. Desse modo, Divanize Carbonieri se insere nesse grupo de escritoras que, longe de fazer apenas uma obra de interesse sociológico, já que quando falamos de literatura queremos dizer de arte, utiliza a escrita, a linguagem literária, com talento, trabalho e mérito, criando objetos artísticos que, como tais, possuem complexidade, jogo, desmecanização do olhar pela linguagem e sobre a própria linguagem.

 

Todos os sete contos da coletânea são narrados por homens. O primeiro deles é já a amostra do que o livro, de forma bastante orgânica, oferece. O narrador de Gols tem uma relação numérica com as mulheres e isso aparece até mesmo na edição, com os numerais negritados na página. Um homem velho, sem qualquer autocrítica, mas que critica as mulheres o tempo todo, tendo para elas um lugar bem determinado e restrito. Em Gols, fica também explícita a “broderagem”, uma rede de favorecimentos e solidariedade entre homens que se ajudam mutuamente a enganar e prejudicar mulheres de toda forma possível, chegando ao cúmulo de se conseguir manipular resultados de exames de paternidade em laboratórios. Recentemente, no Brasil, assistimos estupefatas uma cena de “broderagem” sem disfarces: condenado por estupro, o técnico Cuca sai, sob pressão, do Corinthians, abraçado pelos jogadores, como se fora ele a vítima e mostrando indubitavelmente para onde vai o apoio da turma. Em Gols, tanto o narrador quanto seus “brothers” se sentem à vontade para determinar o que uma mulher deve ou não comer, quanto; se deve ou não se maquiar, quando; se deve transar ou não e com quem. 

 

 

Sempre no comando é o título do segundo conto do livro e é o nome de um canal do youtube dedicado a explorar temas sensíveis à família brasileira. O narrador oferece um contraponto ao machismo (um feministo?), na medida em que faz a crítica ao ex-amigo, ex-progressista e agora neofascista influencer digital. A revelação nos leva à costumeira hipocrisia na qual costumam viver os grandes moralistas. O conto é surpreendente e nos faz pensar na frase utilizada amiúde para contra-argumentar qualquer acusação ao patriarcado e silenciar a mulher que fala: “nem todos”. Ou seja, já que não são todos, cale a boca e mude de assunto. Várias questões são discutidas em Sempre no comando, mas a centralidade da questão do aborto mostra a misoginia presente em todas as ações que, no fundo, e por desejo maior, quer encurralar as mulheres até não sobrar lugar nenhum. Pois o lugar que a misoginia reserva às mulheres não é nem um lugar, é um não-lugar, como mostrou Margaret Atwood, de forma indubitável, em O conto da Aia.

 

Pura selvageria é o terceiro conto; nele um crítico literário recebe os originais de uma jovem escritora de 25 anos. Sua crítica é demolidora e deslegitima de todas as formas a escrita da jovem, além de desencorajá-la do exercício da escrita. Mas esse narrador ainda vai ser mais inescrupuloso. Em um jogo criativo, Divanize Carbonieri surpreende até mesmo quando já imaginamos como terminará essa história. Afinal de contas, é assim que essa história no mundo das artes terminou tantas vezes para as artistas mulheres. 

 

Desculpa, quarto conto do livro, aumenta progressivamente a tensão do que já vem sendo narrado. À medida que se vai lendo, a leitora/o leitor passa a ter a impressão de encurralamento. Tudo nos leva a crer que a situação em Nave alienígena chegará ao limite. Este é o conto que, em um crescendo, mostra o que acontece em uma cultura em que as situações mostradas nos três primeiros contos do livro não são só verossímeis, mas reais. Aqui é interessante notar como a cultura machista atravessa os tempos, utilizando as mulheres como instrumentos de perpetuação. Ao cometer todo tipo de abuso contra a esposa, o narrador recorre à compreensão e condescendência – e depreende-se que ele sempre a tivera – de sua mãe.

 

Maldito sentimento é o quinto conto. O narrador é um peão de rodeio que pensa por meio de músicas sertanejas. Sim, seu pensamento é bem limitado. Sua ideia das mulheres encontra todo o tempo analogia com a relação com os animais de pasto: vacas, cabritas, potras, potrinhas… especialmente bichos de montaria. O sexo sempre associado a montar. O narrador certamente confunde vontade de fazer sexo ad infinitum – compulsão, transtorno mental – com virilidade. Há toda uma cultura para inserir o homem neste lugar em que ele é reduzido ao seu aparelho genital, achando nisso grandes vantagens, o que impede inclusive que possam se tratar.

 

No sexto conto, intitulado O trançado, o narrador é um psicopata e está à espreita de uma nova vítima. Mais uma menina. Porém, surpresas podem acontecer quando a caça se torna o caçador. Já em Rosa ascensionada, sétimo e último conto do livro, não poderia faltar aquele “outro mesmo tipo” de homem, o evoluído espiritualmente que utiliza do suposto poder religioso para abusar sexualmente dos vulneráveis, mais especificamente mulheres e crianças.  Ao final da leitura de Nave alienígena temos dúvidas sobre qual dos narradores nos dá mais nojo. Muitos empatam tecnicamente.

 

Todos os homens dos contos de Nave alienígena não possuem um olhar crítico sobre si mesmos, popularmente diríamos que sofrem de falta de “desconfiômetro”, que não são capazes de “se olhar no espelho” e perceber que antes de caírem no assédio sexual, no crime contra mulheres, já caíram há muito tempo no ridículo. Os homens de Divanize Carbonieri parecem caricaturas de homens, não porque ela não soube descrevê-los, mas justamente porque soube. Afinal, essas caricaturas andam por aí, estão nos ônibus e nos carros importados; montando cavalos ou viajando de avião, estão em todas as classes sociais, são de todas as cores, etnias e de idades as mais variadas, são altos, baixos, medianos, magros ou gordos. São analfabetos ou mesmo pós-doutores. São de fora e são da família.

 

A escritora Olga Tockarczuk, no brilhante romance Sobre os ossos dos mortos, descreve essa caricatura ambulante como provida do que chama de “autismo de testosterona”. Ensina-nos a observadora autora polonesa: “autismo de testosterona, que se manifesta lentamente como uma deficiência de inteligência social e da habilidade de comunicação interpessoal que compromete a formulação das ideias. O homem-caricatura, o autista de testosterona, é um homem real. Projeta nas mulheres suas fraquezas e inseguranças, incapaz de ver a mulher real sob o véu de suas projeções. Lembrando que a mulher real é individual, caracterizada pelas qualidades únicas de si mesma. Como disse Jacques Lacan, acertadamente “a mulher não existe”. O homem também não deveria existir, mas o patriarcado insiste nessa nave de abdução, capaz de transformar meninos em muito menos do que poderiam ser em troca do domínio de um planeta em completa ruína e decadência.


Algo que eu já vinha reparando na época era o fato de que as meninas da idade dela não andavam mais de cara limpa. Justamente elas, que ainda podiam fazê-lo. A beleza natural estava visivelmente em baixa. Todas desejavam se parecer com bonecas de plástico. Porém, as mulheres mais velhas, como essa pobre figura com quem conversara antes, frequentemente declinavam da maquiagem. Elas, que tinham afinal mais precisão. Isso acontecia e continuou acontecendo diante dos meus olhos, sem que eu pudesse entender o porquê. Seria influência do feminismo de outras décadas? Não é à toa que todas as feministas de carteirinha são monstruosas. Querem negar a lex aeterna de que as mulheres nasceram para ser enfeites, para embelezar o mundo. É da vontade divina, o que se pode fazer? E o que dizer da tolice criminosa de tentar persuadi-las de que não precisam se encaixar em padrões estéticos? Felizmente, as jovenzinhas não dão mais ouvidos a isso, e querem mesmo nos agradar, receber olhares, cantadas e convites. Por isso, se produzem tanto. Elas negam, mas é porque têm mesmo que negar. Faz parte do jogo de sedução.” (p. 30/31)

 

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Nave alienígena

Divanize Carbonieri

Contos

Ed. Cálida

2022



 

Divanize Carbonieri é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e professora de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É autora dos livros de poesia "Entraves" ( 2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, "Grande depósito de bugigangas" (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, "A ossatura do rinoceronte" (2020) e "Furagem" (2020), além da coletânea de contos "Passagem estreita" (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019, e segunda colocada na categoria conto na edição de 2019. Também foi finalista no 3o Concurso da Editora Lamparina Luminosa em 2016. Atua ainda como tradutora, tendo participado da tradução de "Hind Swaraj: autogoverno da Índia" de Mohandas Gandhi e "100 Grandes poemas da Índia". Integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras - MT.




Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)