Trechos de Os pares de sapato não acompanham as quedas

 


por Maria Eugênia Moreira__









I


Posso dizer que nunca fui tão sozinha quanto como me tornei depois de perder o meu filho. As pessoas me dizem, acho que com boas intenções, para parar de pensar nessas coisas: no meu filho chorando; no meu filho descalçando os sapatos; no meu filho levantando do sofá e afastando o cachorro das canelas porque não era hora de brincar de bolinha; no meu filho abrindo a janela da sala e olhando para baixo, ou para o apartamento da frente, ou fechando os olhos; nele passando uma perna pela soleira e depois a outra, ou se apoiando de costas para o precipício e encarando a porta da própria casa e nesse momento lembrando que talvez fosse bom deixá-la destrancada porque alguém precisará entrar no apartamento; nele destrancando a porta e precisando pensar nisso; nele tirando os óculos e os pousando sobre o sapato e sendo encontrado momentos depois ao lado do prédio ainda com o nariz marcado com o formato das borrachinhas que seguravam as lentes na altura dos seus olhos; no meu filho acordando naquele dia e escovando os dentes e passando o fio dental sentindo que alguma coisa mudara; nele vestindo a calça jeans e o cinto e tomando o café da manhã com o peito e as costas nuas; nele sentindo toda a culpa do mundo porque o meu filho nunca gostou de chatear ninguém; nele caindo assustado e se assustando com o barulho oco do próprio corpo. Na dor dele. No medo dele. No momento em que ele morreu de fato após a queda, coisa que o bombeiro disse ter demorado pouco menos que quatro segundos — uma média, minha senhora, mas não pense nisso, não pense nisso nunca — mas quatro segundos é coisa demais para o filho de alguém que sangra caído no chão. 





II


As pessoas temem me contrariar, não questionam mais as coisas que faço e facilitam essa loucura. E nem imaginam os absurdos que já cometi, principalmente nesse apartamento. Coisas como: escovar os dentes com a escova do meu filho morto, passar o batom que encontrei no fundo do seu armário, que devia ser de uma de suas ex-namoradas, espirrar o seu perfume nas plantas do prédio, jogar pela janela uma foto minha recente e depois uma de Heitor e sua nova família não pela janela da sala, de onde Marcos se jogou, mas pela janela do quarto. Quando perguntam de mim, são sempre poucas perguntas, no máximo três. E dizem “Célia, estamos preocupados, você não parece bem. Está magra demais, quieta demais, triste demais. Você precisa de ajuda, Célia. Você precisa de companhia. Você precisa seguir em frente. Precisa parar de se martirizar, de sofrer dessa maneira, de agir como viúva. Precisa se interessar de novo pelo mundo e pelas pessoas, quem sabe aprender uma nova língua e viajar. Francês. A cidade e o sol de Marselha, capital da água, do sabão e também dos refugiados. Ou um país vizinho: Bolívia, Argentina, Venezuela. Ir para o Uruguai hoje em dia sai mais barato que viajar para a Bahia! Ou passar mais tempo com as pessoas que te amam e parar de se isolar tanto assim”. Elas não entendem. Como poderiam? Eu também não entenderia se não fosse comigo. Faria um esforço, sentiria o lamento, mas não seria capaz de entender o tamanho do abismo. Perder um filho e tirar férias no estrangeiro sob o pretexto de recuperar-se da perda, uma ideia esdrúxula de quem acredita que uma perda dessas se equipara a perder uma tia já doente ou a falir nos negócios. Bronzear a dor em praias europeias. Gastar o meu inglês e o meu francês e o meu espanhol no velho continente. Son & fiston & hijo; dead & mort & fallecido. Elas não entendem: é uma placenta por dia escorrendo pelo vão das minhas pernas, todos os dias, até nunca mais. 




III


Evito olhar para o topo dos prédios sempre que saio na rua. Tenho a impressão de que assistirei aos corpos caindo, ao meu filho caindo, aos braços soltos no ar. Algo como aquelas fotografias de corpos voando no atentado de onze de setembro, lançados pela janela. Imagens de baixa qualidade, borradas pelo zoom e pela fumaça, e ainda assim impressionantes. Pesquisei essas imagens e imaginei ser o meu filho, aqueles pontinhos no céu identificados pelas gravatas flutuantes. Nessas fotografias o tombo parece infinito, mas o meu filho caiu por alguns poucos segundos. Foi isso o que durou a queda: quase nada. Não deu tempo de empunhar as câmeras e fotografá-lo suspenso no ar, o rosto assustado. Não sei se deu tempo de eles assistirem à queda, os passantes na rua ou vizinhos de apartamentos de andares mais baixos. Alguém no quinto andar assistindo televisão com a cortina da sala aberta, focado no telejornal e com a impressão de ter visto alguma coisa passando pela janela. O meu filho. O meu Marcos caindo em silêncio e se espatifando no chão. Sem incêndios, sem aviões enfiados violentamente no edifício, sem fumaça e terror. Uma quarta-feira à noite, calma e quente. Nenhum registro da queda, além da mancha de sangue no chão. Se uma pessoa se lança da janela e ninguém está lá para ver e ouvir, ela se lançou mesmo? Sim. E alguém sempre liga avisando a mãe. 










Maria Eugênia
é escritora e graduanda em Psicologia na PUC-SP. Criada na divisa dos três estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), a autora sofreu desde cedo a influência da literatura local.
 "Os pares de sapato não acompanham as quedas"  é o seu terceiro livro publicado. Atualmente reside na cidade de São Paulo, onde estuda e faz a vida.