Modos de rendição, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__





    Foto: Sasha Freemind


Fico pensando como seria a minha vida sem Verona. No começo, ouvi muitas críticas, principalmente sobre o comportamento da moça; veja só: “Ah, ela é uma pomba sem fel, Luiz! Sem sal e sem graça nenhuma. Não troca uma palavra com o seu pai, não dá um bom dia que preste. Passa pela sala de cabeça baixa, direto para o seu quarto, como um bicho acuado”. Era dessa forma que dona Lina, minha mãe, a descrevia. Imagine você, leitora, se Verona fosse uma porra louca, uma trambiqueira. Não vou mentir: por essas falas de minha mãe, criei uma certa rejeição a Verona e fiquei um tempo out, meio que observando o que iria acontecer; o que Verona faria por nós. A minha frieza teve um efeito absurdo, adverso: Verona se tornou mais fria ainda, como se não estivesse nem aí para o nosso futuro; e eu, que pensava em uma virada de ânimo; imaginava ser ela uma menina isolada e carente. Lembro-me que Verona passou quase duas semanas sem falar comigo. Eu estava para ficar louco, tentando atinar o que ela estaria fazendo, se tinha desencanado de mim; se teria, num tempo tão curto, arrumado outro carinha. Enfim, liguei. Com uma voz bamba, perguntei se ela estava bem e se precisava de algo. “Não, Luiz, estou muito bem. Tirando as provas, tudo bem”. Seca e direta. Não era possível. Ela estava preparada para me arruinar. Fui à sua casa, a uns três quilômetros da minha. Bati à porta e, infelizmente, quem atendeu foi o seu pai, um sujeito bastante ranzinza. “Verona não está esperando ninguém!”. Logo ele quis fechar a porta, quando a segurei e disse que, de fato, ela não me esperava, mas que gostaria de trocar duas palavrinhas. Ele, com a boca murcha e uma vontade tremenda de se despachar, confirmou com um aceno de cabeça que a chamaria. Verona demorou um século – nos meus cálculos, vinte minutos. Ela apareceu bem diferente, moderninha, com os cabelos pintados na cor roxa. Parei um tempo e a olhei arriscando uma elucidação para aquela mudança drástica. “O que foi, Luiz? O que você tem de errado?”. Quando voltei a mim, no ato, perguntei se ainda estávamos namorando, e ela respondeu que não sabia – depois entendi que não sabia o motivo da pergunta. “Ah, Verona, sabe o que é? Acho você meio distante, não liga muito para mim nem para a minha família”. “Que eu saiba, o meu ‘compromisso’ – rasgando o ar com os dedos, para marcar as aspas – é com você. E outra, não sou eu quem anda esquisita, e sim você e sua família. Eu me sinto constrangida quando chego lá. Você não nota que a sua mãe não nos deixa um minuto a sós; fica passando, pegando isso e aquilo, só para dar conta do que estamos falando… E o seu pai, que me olha sempre de rabo de olho, como se eu fosse uma vagabunda qualquer; um passatempo do seu filhinho; um caso e nada mais. Eu que lhe exijo explicações, senhor Luiz Neto!”. Posso dizer que aí a chave virou. Percebi que era exatamente assim como Verona relatava. E não só com ela, com as anteriores “namoradinhas” também. Minha mãe sempre colocava algum defeito; que a moça era atirada; que estava se escanchando, como um “sapo”; que era vulgar, atrevida; coisas do gênero. Meu pai, nem tanto; ou seja, refletia fielmente a influência de minha mãe. Quando voltei para casa, disse, de propósito, que meu namoro estava às mil maravilhas; que sonhava entrar logo na faculdade para arrumar a minha vida com Verona; e, que sorte!, teria encontrado a mulher dos meus sonhos, com quem queria casar. Dona Lina estava incontrolável de nervosismo, se coçava inteira, como se estivesse sendo atacada por pernilongos. “Não é possível, Luiz, você está delirando! Onde já se viu casar com uma menina daquela?!”. “E com qual menina eu devia me casar, mãezinha?”. “Ah, com outra, bem diferente dessa!”. “Mas por quê? Eu a amo e sei que é uma mulher especial”. “Ora, ela não tem nem sobrenome, é uma indigente; o pai, um beberrão; não tem mãe; vive amontoada com os irmãos num chiqueiro”. Então vi que o cerne era o preconceito. Minha mãe não se deu a oportunidade de conhecer a alma de Verona. Para ela, servia o nome, o status, e, quem sabe, a riqueza. Digo que, nos cinco anos seguintes, até o casamento, Verona foi tolerada e aceita em nosso meio, vendo, dona Lina, que não havia mais jeito. Era nítida a nossa paixão, o nosso respeito um pelo outro, a vontade de crescermos juntos. Verona me ensinou tudo o que sei sobre a vida, sobre objetivos, sobre ser um verdadeiro homem para a família. Isso não é um conto de fadas, leitora; a minha intenção não é contar uma história atrapalhada com final feliz. Não há finais felizes; há realidade, luta e amor. A redenção veio com a chegada de Maria Lina, que ganhou o nome em homenagem à avó redimida. Com Maria Lina, dona Lina virou outra pessoa, atenta, amável, confiante. Falo confiante porque dona Lina tinha um medo enorme de que o mundo pudesse corromper o seu amado filhinho. “Você é o meu único filho, Luiz!”. Essa frase já não se ouvia mais, felizmente. Dona Lina distribuiu ou dissipou as suas ansiedades. E Luizão, meu pai, tornou-se um homem para a grande família; preocupava-se com o nosso bem-estar – o meu, o de Verona e de Maria Lina. É, a emoção contagia até os corações menos sensíveis. Verona mantinha-se serena, feliz, tendo cumprido um belo e sedimentado trabalho de amor. Ela, para todo o sempre, o meu porto-seguro, a nossa paz. Se não fosse Verona, nem sei.




Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram.com/adrianobespindolasantos/ | facebook.com/adrianobespindolasantos adrianobespindolasantos@gmail.com