Não podemos escrever sobre a floresta sem escrever também sobre política

 por Taciana Oliveira








“Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da mata” (Aboio, 2022)de Yvonne Miller será lançado neste sábado, 17 de junho, às 19 horas na Livraria Lamarca. Nesta edição conversamos com a cronista sobre as etapas de publicação do seu primeiro livro. 


Confira a entrevista:


1 - De onde veio a inspiração para a produção do teu primeiro livro solo?

 

“Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da mata” nasceu das minhas vivências em Aldeia dos Camarás, na Mata Atlântica pernambucana, onde morei durante os últimos três anos. A gente morava bem no meio do mato mesmo, e a melhor inspiração foi isso – o contato direto com a flora e fauna, os encontros com animais que eu nem sabia que existiam ou com os quais eu jamais tinha imaginado dividir meu hábitat; com direito a bicho-preguiça no jardim, caranguejeira em cima da cama, cobras, tejus, jacarés e afins. Foram os bichinhos os que mais me inspiraram para as crônicas. Mas também tem crônicas inspiradas em notícias – o assassinato de Bruno e Dom, por exemplo – ou em reflexões sobre meu papel na preservação das florestas.

 

 

2 - Qual foi o maior desafio encontrado na produção da obra?

 

A publicação. É bastante difícil publicar livros de crônicas – a não ser que você já tenha um grande público –; muitas editoras tradicionais preferem narrativas longas ou outros gêneros. O cronista Fabrício Corsaletti disse uma vez numa oficina que o Brasil não valoriza seus cronistas. E isso apesar da crônica ser um gênero tão brasileiro que poderia ser o orgulho literário do país se recebesse mais atenção do mercado.

 

 

3 - Como você descreveria o teu processo de criação? Como nasce uma crônica?

 

Ah, a crônica quase sempre nasce deliciosamente! O legal desse gênero é isso: tudo é material para uma crônica. Seja uma pele de cobra encontrada na grama, um mini-incidente no passeio com o cachorro, as marmotas dos vizinhos ou a palavra de uma criança... As crônicas estão bem aí, espalhados no nosso dia a dia; basta observar e perceber a poeticidade das pequenas coisas. Citando Manoel de Barros, de quem também emprestei uma das epígrafes do livro: “Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei.” É desse encantamento que nasceram muitas crônicas do livro. Outras nasceram do estranhamento, de uma reflexão, da alegria, da preocupação, da raiva...

 

 

4 - Quando você se percebeu como cronista? E de que maneira sua nacionalidade contribuiu para uma construção narrativa singular sobre o cotidiano do povo brasileiro?

 

Comecei a escrever crônicas em 2014, quando morava em Belém do Pará. Mas nem sabia que aquilo eram crônicas; achava que eram contos esquisitos. Como na Alemanha não existe a crônica como gênero tradicional, eu não tinha muitas referências. Só me descobri cronista depois de ler Veríssimo, Martha Medeiros etc. e de participar de uma oficina com Fabrício Corsaletti, que me apresentou (literariamente, claro) Rubem Braga. Depois disso, comecei a escrever crônicas valendo e a publicar em revistas, antologias etc.

Acho que o fato de não ter nascido aqui me permite ver o cotidiano brasileiro com outros olhos, olhos de fora. E muitas vezes me surpreendo diante do que observo; acontece um estranhamento, vejo graça nas coisas mais comuns. Por exemplo, acho hilário que aqui você possa comprar picolé na farmácia, e quem sabe até colares de ouro e biscoitos pra pets. Daí eu vou lá e escrevo sobre isso. E como gosto de tirar onda de mim mesma, fica divertido também para quem lê essas crônicas interculturais.

 

5 - Esses últimos anos morando em Pernambuco influenciou de alguma forma ou te indicou um caminho para a estruturação do livro?

 

Com certeza! O livro é dividido em quatro partes que correspondem às estações do ano e também à fase da minha vivência na Mata Atlântica. Então, por exemplo, na primeira parte – Cheiro de terra nova ao sol –, minha família e eu estamos chegando em Pernambuco, tudo é novo e “exótico” (entre aspas mesmo, porque brinco também com esse conceito no livro), estamos curtindo o verão pernambucano e tendo os primeiros encontros com a flora e fauna presente nessa época do ano. Nesta parte a maioria das crônicas são leves e divertidas. Já na terceira parte – Tempos de chuva e chumbo – a pegada dos textos é outra: estamos nos meses de chuva, a falta do sol me causa certo sofrimento psicológico, e também as crônicas são mais densas e aflitas além de políticas e reflexivas. Mas até nessa parte há poesia e esperança porque a chuva também representa isso.

 

6 - Para o escritor mineiro Fernando Sabino a humanidade precisava “recuperar a inocência perdida e tornar a olhar o mundo com os olhos lavados da pureza, de quem vê a vida pela primeira vez”. É possível afirmar que o teu livro Deus criou primeiro um tatu é também um manifesto de resistência e esperança?

 

Sim, e isso começa na dedicatória do livro: “À Floresta. E a todos os seres e espíritos que dela cuidam”. O Tatu é meu melhor jeito de compartilhar com outras pessoas um pouco dessa experiência maravilhosa e desse aprendizado todo. Mas não é um livro didático e tampouco um panfleto político. São crônicas literárias – leves e divertidas sempre que possível, mas também críticas e políticas quando necessário. Porque não podemos escrever sobre a floresta sem escrever também sobre política.

 

 

7 - Pergunta clichê: Quais as suas referências na literatura? Existe algum escritor ou escritora que traduza as suas aspirações literárias?

 

Ah, eu não escreveria do jeito que escrevo hoje sem Rubem Braga e Veríssimo. Tati Bernardi e Gregório Duvivier me presenteiam com altas gargalhadas e Clarice é sempre Clarice. Mas minhas referências literárias mesmo, em termos de leitura e troca de ideias, eu diria que são as cronistas e os cronistas do meu dia a dia: Luciana Braga, Zélia Sales, Giselle Fiorini Bohn e Anthony Almeida, entre outres.








Yvonne Miller
 (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Também colunista da revista Mirada, com crônicas e contos publicados em várias antologias, e uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos “Quando a maré encher” (Mirada, 2021). 
“Deus Criou Primeiro um Tatu – Crônicas da Mata” (Aboio, 2023) é o melhor que ela já escreveu.












Taciana Oliveira é comunicóloga, radialista, editora das revistas digitais Mirada e Laudelinas, coordenadora editorial do Selo Mirada e cineasta. Dirigiu Clarice Lispector - A Descoberta