A solidão do corpo trans: Propedêuticas para uma reflexão epistemológica

 por Ariel Montes Lima__




A SOLIDÃO DO CORPO TRANS: PROPEDÊUTICAS PARA UMA REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA



RESUMO: Nesse ensaio, viso discutir a condição de invisibilização e solitude vivida por sujeitos transgêneros. Essa pesquisa possui carácter multidisciplinar, se estabelecendo a partir de conhecimentos filosóficos, psicológicos e sociológicos. Ademais, o estudo se estrutura mediante vivência individual da pesquisadora, tendo características autobiográficas. A análise é propedêutica e, dessa sorte, não almeja esgotar o tema, mas propor reflexões acerca do tema citado. 

Palavras-chave: Transgênero. Invisibilização. Transgressão. Violência de Gênero.

 

1.INTRODUÇÃO

Dói-me um pouco na carne falar de um tema tão íntimo e paradoxal no seio da ciência contemporânea. Íntimo, pois não posso me desassociar – enquanto pessoa trans- do que objetivo analisar. Paradoxal, pois fadiga-me a existência enquanto um corpo que é demasiado olhado, mas raramente visto. Daí advém meu interesse por discutir a condição de solitude vivida pelos corpos transgênero. 

Evidentemente, pois, o interesse da pesquisadora não se desassocia da posição individual de quem escreve e pesquisa. Ademais, a razão e a poiésis configuram percepções possíveis de realidade. Assim, a exclusão da subjetividade no processo de investigação -sobretudo na área de ciências humanas - não é necessariamente o melhor modo de se construir uma interpretação do real. Nas palavras de Zambrano (2023):


Hay, pues, un horizonte amplio desde Grecia -la Grecia parmenidiana- a la Europa de Hegel, en que el hombre, todo hombre, ha sido racionalista con un racionalismo esencial, de base, de fundamento, que podía, inclusive, escindirse en teorías o «ismos» de enunciación opuesta. Mas, esta oposición no alteraba la medida, la proporción de verdad, seguridad y liberación que habían hecho de la confusa realidad virginal, del indefinido, ilimitado apeiron, de las oscuras y terribles pasiones, un mundo habitable, un orbe donde el hombre instalado ya casi naturalmente, se sentía con potencia para edificar y con humildad para contemplar lo edificado, con violencia para desprenderse de mucho y con amor para adherirse profundamente a algo.


Ademais, o campo dos estudos queer é relativamente jovem dentre as ciências humanas. Dessa forma, a literatura especializada disponível para consulta é, ainda, estreia. Ainda mais, se nos adentramos na miríade de identidades possíveis para o que referimos ser, de modo geral, um corpo trans. 

Um corpo transgênero, pois, extravasa a binaridade estipulada e, ao fazê-lo, desestabiliza um aparto social. Essa desestabilização rompe com a performance identitária esperada daquele ser, abrindo margem para uma irrepetível unicidade. É dizer: não há um corpo trans, mas uma vastidão de formas possíveis de ser. Por isso, em virtude da enorme dimensão de possibilidades disponíveis, e cuja extensão é absolutamente impossível de ser coberta por um único artigo, opto por uma investigação que mescla a pesquisa autobiográfica e o estudo bibliográfico. 

A questão que permeia minha pesquisa é da ordem do como, tal que almejo perfazer um itinerário epistemológico para analisar o problema. Para tanto, a seção “Desenvolvimento” do meu trabalho está dividida em três tópicos. No primeiro, realizo um breve levantamento bibliográfico acerca da construção sociocultural dos gêneros. No segundo, discuto a ideia de fetiche e subversão com foco no imaginário que rodeia tais sujeitos. Por fim, no último momento, discuto as diferentes formas de apagamento, silenciamento e solidão vivenciados por sujeitos transgêneros. 


2.1 A EPISTEMOLOGIA DO CORPO TRANS: UMA BREVE REVISÃO DE LITERATURA

Ainda que seja uma concretude dentro de nossa vida social, 


Atualmente, dentre os grupos minoritários de qualquer ordem, o grupo das pessoas transgêneras é o que mais sofre a rejeição social. Inclusive teoricamente, mesmo os pesquisadores percebendo que as modernas teorias sobre gênero não englobam a transgeneridade, pouco se tem pesquisado sobre esse fenômeno complexo e poucos são os pesquisadores que se preocupam em tentar explicá-lo satisfatoriamente. (Modesto, 2013: 50)



Isso um fator de enorme impacto dentro da literatura específica desse campo. Desse modo, muitas vezes, a pessoa pesquisadora necessita recorrer aos estudiosos da grande área para, a partir daí, construir um referencial específico dos estudos trans. Isso permanece, ainda que tenhamos diversos textos relevantes, pois a especificidade de pensar o ser trans no mundo ainda não foi tão bem explorada como deveria. 

Nesse sentido, o livro "O Problema de Gênero" de Judith Butler, publicado em 2017, se revela uma obra de notória importância no campo dos estudos de gênero e da teoria queer. Nesse livro, a pesquisadora sublinha que o gênero não é uma categoria fixa e imutável, mas sim uma construção social e performática. Ela argumenta que as identidades de gênero são criadas e mantidas através de práticas repetitivas e performances cotidianas que são internalizadas pela sociedade como verdades naturais.

Butler evidencia que a performatividade de gênero é uma forma de "fazer" gênero, na qual os indivíduos adotam e reproduzem normas e comportamentos considerados apropriados para sua identidade de gênero. Bornstein (2019) coaduna com a percepção de que o gênero é socialmente construído. Acrescenta a autora, todavia, a importância da transgressão da norma como uma estratégia de resistência política.

Assim sendo, pois, é possível deduzirmos que a construção dos gêneros enquanto aparatos semióticos é, também, variável culturalmente. 


2.2O FETICHE E A SUBVERSÃO

Modesto (2013, p. 60) admite que a sexualidade está socialmente colocada sob a égide uma masculinidade dominante. Dessa forma, a possibilidade de determinação individual da identidade é vedada discursivamente. Contudo, “transexualidade desconstrói essa ditadura, demonstrando que há uma pluralidade de sexualidades e generidades que não se enquadram em formações bigêneras. ”

Não obstante, é igualmente sabido que a condição transgênero encontra-se em um lugar de extrema erotização (OCKER, 2021). Acerca da vivência enquanto um corpo desestabilizador, comenta a autora (2022): 


[...] o interesse sexual do público masculino cis pelos corpos trans parece derivar de uma curiosidade em relação à visão de um “homem com vagina” e uma “mulher com pênis” tanto pelo aspecto físico que tais corpos encenam socialmente quanto pelo fato de que, à vista dos olhares conservadores, a vivência trans não torna um corpo biologicamente pertencente a um sexo como socialmente entendido dentro do gênero oposto ao que se associa aquela forma biológica. [...] o que se interpreta não como propriamente feminino, mas como uma redução da masculinidade embotada e submissa do “homem” travestido de mulher.

Evidentemente, essa relação é calcada na desumanização do corpo transgênero, cuja individualidade é reduzida a um objeto do prazer, um receptáculo da agressividade sexual do homem cis



2.3ENTRE GOZOS, FETICHES E ABANDONOS: O CORPO TRANS

Como dito no início desse trabalho, o corpo trans é epítome de um conjunto de possibilidades de ser. O termo trans, destarte, serve para fazer par ao corpo cis, no sentido de que todas as formas de ser que confrontam a cisnormatividade são trans. Normalmente, são atribuídos a esse lugar os corpos binários. Ou seja: a mulher trans e o homem trans. Essas formas de ser rompem com o paradigma da norma e contestam a rigidez dos papéis sociais a eles atribuídos. Esse processo, como assinalam Nolasco-Silva e Vieira (2020) implica uma reação violenta por parte da sociedade.

Mas, enfim...onde está, entre todas essas discussões, o corpo trans de fato? Assinalamos os comentários dos estudos de gênero, tratamos do fetiche, da violência, mas o lugar da identidade trans por si mesma ainda é como um novo continente, bárbaro aos olhos dos colonizadores e inexplorado. Ao menos, inexplorado pela vivência cis. Isso porque –digo pela vivência pessoal agora- em todas as experiências comunicativas que tive em ambientes intelectuais após a transição, inevitavelmente, surgia a mesma ideia enunciada de diferentes formas: de que falar sobre ser trans é apenas e tão somente discutir a materialidade da minha existência. 

Sejamos mais claras: minha formação é plural. Sou psicanalista, linguista, historiadora e professora já há algum tempo. Tenha uma produção relativamente considerável –dada minha idade- e, além disso, sou autista. Isso, contudo, nunca me foi perguntado em nenhuma entrevista, palestra, congresso ou comunicação. Tudo o que vem à mente das pessoas é o fato de eu dar a palestra (em que discuto, por exemplo, uma proposta de demonstração das teorias da relatividade linguística) usando salto alto e batom vermelho. 

É fato que somos corpos e somente através da experiência corpórea se estabelece uma relação do sujeito com o mundo. Assim, é óbvio que não como negar que usar salto e batom seja um fator de impacto. Contudo, negar toda a materialidade do discurso da enunciadora por essa razão para centrar-se no corpo que profere o discurso é como analisar a caligrafia de um livro sem lê-lo. De que importa conhecer a forma se desconhecemos a substância? 

Com efeito, esse problema é muito mais vasto do que apresento ilustrativamente em meu exemplo particular. Trata-se de uma questão tão agravada que ouso supor que, caso perguntassem aleatoriamente para uma pessoa queer qualquer quem ela é, talvez também sua resposta se resumisse às suas características físicas. Não digo isso com fins a diminuir a ninguém, mas a provocar uma discussão. Afinal, somos, nós LGBTQIAP+, todo o tempo, atravessados pelo olhar superficial do outro, que nos percebe não como um ser humano complexo, mas –tão apenas- como “um homem que acha que é mulher”. 

É possível que daí venha nossa solidão, uma vez que o desconhecimento –e talvez ausência mesma- de uma identidade constituída per se gera uma enorme angústia nos sujeitos. Nesse sentido, é extremamente relevante nos desvincularmos da égide cisheteronormativa, grande responsável por incutir a percepção negativa e o silenciamento de nossas existências. 


3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio, pretendi apresentar algumas considerações acerca da solidão do corpo trans, com vistas a propor reflexões e questionamento. Argumento que o aparto de opressão, exclusão e apagamento sistemático das identidades aqui mencionadas são elementos que favorecem a dificuldade do sujeito transgênero em constituir a própria identidade. Isso -mais do que tudo-, defendo, é um fator que aliena o sujeito da possibilidade de tecer percepções salutares com relação a própria existência e ao mundo a ele exterior. Pontuo que, entrementes, esse é um efeito sutil da opressão e, dessarte, não disputa com as já sabidas violências físicas contra tais sujeitos. Interessou-me, portanto, assinalar que tal solidão é um dos elementos componentes do amplo bojo de violações experimentadas pela população transgênero. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, J. O Problema de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

BORNSTEIN, K. Gênero Outlaw: Feminismo e a Política da Transgressão. São Paulo: n-1 Edições, 2019.

MODESTO, E. Transgeneridade: um complexo desafio. Via Atlântica, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 49-65, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.11606/va.v0i24.57215. Acesso em: 29 jun. 2023.

NOLASCO-SILVA, L.; VIEIRA, A. L. O corpo trans como corpo-imagem-andarilho: resistência, contestação e desestabilização nos / dos cotidianos escolares. REMEA - Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental[S. l.], v. 37, n. 2, p. 172–189, 2020. DOI: 10.14295/remea.v0i0.11352. Disponível em: https://periodicos.furg.br/remea/article/view/11352. Acesso em: 18 jul. 2023.

OCKER, A. V. Entre o Exótico e o Erótico: Um Diálogo Sobre Transgeneridade. Revista Trama Bodoque. Disponível em: https://revistatrama.artebodoque.com/2022/12/04/o-exotico-e-o-erotico-um-dialogo-sobre-a-transgeneridade/. Acesso em: 29 jun. 2023.

OCKER, A. V. Fetiche do Corpo Trans. Psicanálise Clínica. 2022. Disponível em: Fetiche do corpo transgênero - Psicanálise Clínica (psicanaliseclinica.com). Acesso em: 18 de jul. 2023. 

ZAMBRANO, M. Pensamiento y poesía en la vida española. Disponível em: Pensamiento y poesía en la vida española | Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes (cervantesvirtual.com). Acesso em: 29 de jun. 2023. 







Ariel Montes Lima é pessoa trans non-binary, psicanalista, escritora e professora. Em 2022, publicou os livros Poemas de Ariel (TAUP), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed.) e Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche). Atua como professora bolsista de língua espanhola na UFMT, além de coordenar o Projeto Ikebana Cultural, do qual foi membro-fundadora.