Morrer no inferno, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__






No auge da confusão – entenda, eu tinha dez anos! –, peguei uma faca e disse que ia me matar, se continuasse assim. Meu pai me olhou com aflição, enquanto minha mãe se desmanchava em choro; não por mim, mas pela briga pretérita, imagino. O objeto contundente estava atolado no meu gogó, talvez muito próximo à traqueia ou a uma veia vital. Disso não sei bem. E não pense que era encenação: eu estava mesmo disposto a me matar. Lembro-me que, aos seis, eu saía pelo meio da casa, desesperado, tentando apagar um fogo a que não dei causa. “Pai, pelo amor de Deus, não vai embora!”. Meu pai pegava uma mala improvisada e, por duas ou três vezes, chegava ao ponto de despachá-la no carro. Ligava o automóvel com ferocidade na aceleração. Éramos seres completamente desconectados, difusos e indóceis. Meu irmão, felizmente, não entendia nada. Três anos mais novo que eu, tinha o impulso natural de chorar – porque via a minha mãe chorando. Não tive tempo de elaborar; não sabia elaborar. Essa era uma capacidade que deveria pertencer ao meu pai e à minha mãe; poderiam ter o bom senso de nos poupar do caos. Voltando ao dia: minha mãe puxou o meu irmão, que estava constrito no cercadinho. “Você está vendo, Hermes, o que fez com o nosso filho, o Renato; o que fez comigo e com o Lauro?! Você é um monstro, sem coração, que só pensa em si, nas suas manias, nas suas taras. Mas, mesmo assim, te peço perdão por minha loucura. Deixe tudo pra lá. Vamos ser uma família normal, feliz, por favor!”. Nesse ínterim, eu raspava a faca, com a ponta cortante, na lateral do pescoço. Voltaram a me fitar. Por algum motivo, eu sabia que, se fosse um pouco mais para o centro, estaria tudo acabado – para mim, pelo menos. Parece que eu queria chocar, maltratá-los, como me maltratavam, como espezinhavam o meu corpo; eu estava doído e machucado, deveras. Quando um filete de sangue desceu na lateral, no meu pescoço, meu pai deu um pulo e disse, perturbado: “Não, meu filho, pare, pare! Papai não vai fazer mais isso. Parou. Vamos ficar bem”. Ele já falava engatinhando, qual bebê, tentando se chegar a mim, para, possivelmente, me demover da loucura. Aí, afundei mais a faca no pescoço. “Se chegar perto, me mato; prometo!”. Eu repeti, com obstinação. Era o fim da linha. Conformava-me com a minha mísera e ínfima vida, tão curta e problemática; já havia vivido o bastante para saber que viver não era o meu destino. “Nasci somente para estragar a vida dos meus pais e do meu irmão?”, pensei. Tentei, em milésimos de segundos, entender o meu papel naquela Sodoma. Eu devia puni-los com a dor da morte? O certo é que deviam aprender, da forma mais drástica, porque, como disse, não dava mais. Quase todos os dias a minha casa – a casa margarina, de família margarina, da porta para fora – era um inferno; o pior inferno que a mente humana pudesse imaginar. Minha mãe, trocando os olhos, no impulso para nos acompanhar, tomou a pior das atitudes: “Eu mesma me mato, se continuar assim. EU NÃO AGUENTO MAIS!”. Gritou alto, incontrolável, no ímpeto de expulsar algum espírito zombeteiro. Papai, antes, dizia que era chantagem emocional. Nesse dia, ele não falou nada. Ficou imóvel e, ao mesmo tempo, impaciente. Já não sabia o que fazer, intuo. Dois querendo se matar, nas suas vistas. Ele, de súbito, se deitou no chão e começou a se bater, como um liquidificador ligado que despenca de uma prateleira. Todos paramos os nossos projetos, e corremos em seu auxílio. Minha mãe, quase sem reação, foi ao telefone, para ligar para o meu avô. Escutei de longe: “Papai, papai, me acuda! O Hermes está se batendo no chão. Acho que é uma convulsão”. Estava eu, mais uma vez, cuidando do meu pai, com a sua cabeça em meu colo, passando, leve, a minha mão em seu rosto. “Acorda, papai, acorda! Eu não faço mais isso. Mas me promete que tudo vai mudar, senão eu me mato”. Constatei que ficaríamos do mesmo modo, numa espécie de loop infinito. Quem era o culpado? Quem daria fim ao desastre familiar? Com o quê? No dia seguinte, estando, todos, numa lassidão horrível, catei uma malinha e me mandei para a casa do meu avô. Foram dias de introspecção. Meu avô me pediu uma coisa: “Meu filho, não invente mais de querer morrer. Isso é arrumação do capiroto, do bicho ruim. Tenha dó da gente. Se acontecer uma desgraça dessas, vamos morrer no inferno, antes do tempo. Quando der, volte para a sua casinha, todos te amam”. Tive a tremenda sensação de que eu era a mola mestre para a manutenção de uma suposta paz. Morrer eu morri, ali, naquele fatídico dia, mas não contei a ninguém.





Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. Instagram.com/adrianobespindolasantos/ | facebook.com/adrianobespindolasantos | adrianobespindolasantos@gmail.com