O novo morador kafkiano, um conto de Wellington Amancio da Silva

por Wellington Amancio da Silva__




Jr Korpa


Madrugada silenciosa e fria, uma névoa em todo lugar. Céu de um azul profundo — mariposas orbitam ao redor da lâmpada do poste. Nenhuma estrela indicando um caminho, nenhuma; nuvens escuras num céu escuro. Lembro-me que eu percorria o beco apressadamente; meus sapados porosos e encharcados, eu pisava mole e frio, meus calcanhares doíam. Saíra da aula há quarenta minutos e queria dormir urgentemente — não apenas a pedido do corpo cansado, mas para esquecer um pouco dos últimos acontecimentos. Eu pensava sobre o Incômodo, enquanto caminhava. O que é o Incômodo? Seria uma investida pontiaguda no “comum” do cotidiano, ou uma simples inconveniência que nos preocupa além da conta? O que me incomoda e por quê? São talvez questões filosóficas, enquanto se caminha. A rua estava desnuda, a lua miúda arrastando-se no meio de uma poça d’água, entre as nuvens escuras, lá em cima, e depois sumiu, sobrou a poça d’água de tom ocre de lama no fundo, um espelho opaco do céu sem lua. Não havia transeuntes, àquela hora, somente uma coruja trêmula de frio em cima do poste. Tudo era liso e duro e escuro. Eu me lembrava dela.

Habitar o coração de alguém tem preço?

Me impacientava ainda a lembrança dela, sempre num vertido que lhe caía bem (e se saíssemos, isso me custava muito em me arrumar). Numa noite, estávamos sentados juntos à mesa de algum lugar. Assegurou-me que quando eu expunha algo ao seu respeito já a representava mal, como se fosse elogio por egoísmo da minha parte, de modo que para ela eu assumia certa superioridade, pelo simples fato de eu ser um homem falando acerca dela, ainda que eu não fosse um estranho; mais categórica respondia, ela dizia que ninguém sabe falar do outro, ainda que o exalte, porque todo mundo hoje em dia desconfia de todo mundo e de tudo. “Tudo, reconhecemos hoje em dia, pode ser uma atuação teatral na vida real: a virtude, a indignação, o gênero, o desejo, os elogios... especialmente porque os homens são péssimos em falar algo dos outros” — ela afirmou. Por minha vez, o que penso dela, em sinceridade e zelo, talvez a ela não passe de um embuste; me disse que ninguém no mundo, hoje em dia, sentiria o que eu sinto por ela desse jeito, do modo como afirmo e uso as palavras; “...talvez seu amor não passe de uma coisa meio do século XVIII...” — ela disse. E me contrariava, e às vezes ria de mim, ainda que eu me vestisse respeitosamente, num paletó austero, como Alexander dos Camundongos Aventureiros. Estávamos num impasse, na verdade, desde o ano passado, como se fosse o início do fim; ela sempre me criticava pela menor das minhas opiniões ao seu respeito ou em relação aos seus gostos; eu sempre a elogiava, ela era bem legal e eu até pensei em me adequar à imagem ideal que ela tivesse de mim, eu estava entrando arriscadamente num estado de “gratuito demais”, de artificial demais, quem sabe. No fundo, acho que ela ainda não tinha coragem de terminar comigo; eu já não a compreendia. Mas, todos os nossos dilemas foram interrompidos, de súbito, por um estampido à janela, que sequer ouvi de todo. 

Acho que a constante negação de Laura, quanto aos meus sentimentos, me causou vertigens, ainda que desde cedo uma angustia me sufocasse um tanto, um pressentimento. Quando sobreveio a escuridão, senti um gosto de cobre e de sangue, e acho que até imaginei pessoas derredor, quando caí. Por uns instantes ainda vi Laura com as mãos na cabeça, como se em desespero; vi seus lindos olhos castanhos, redondos de abertos, e apaguei. Isto ocorreu numa noite, em sua casa, noutra daquelas demoradas discussões em que eu argumentava a todo custo para convencê-la (e ela discordava insistentemente, acho que por capricho...). 

Hoje penso, quem sabe não fosse uma farsa o nosso relacionamento? Eu achava-o necessário, ainda que fosse uma farsa, porque sempre há algum nível de farsa em algum momento, nas relações, ainda que seja uma farsazinha sem pretensões cujo desenrolar implique prejuízo. E Laura me beijava um beijo luso de língua, no meio de minhas exatas palavras, conjugadas em vão e a dizer nada, porque ela sabia me calar, para bem ou para mal, por assim dizer.

O ex dela implicava ainda, com recados e olhares inconvenientes. Ela afirmou que Luiz era passado (ainda que o passado de Luiz fosse terrível). Eu não me importava muito com seu antigo relacionamento, se Luiz continuasse distantes de nós, o que não ocorreu nos últimos dias. Minha questão e meu interesse era Laura. Eu tentava focar em algumas questões para o bem do nosso relacionamento. Há, decerto, um nível de memória em que o outro permanece. Luiz deveria estar em algum lugar, tomara que num arquivo morto.

Quantas vezes um coração permite que se habite? 


Caminhando, e talvez para não perder tanto tempo caminhando aqui, se eu me provoco acerca de uma “ontologia do Incômodo”, diria que hoje tal provocação me traz a uma condição de comodidade, porque o próprio ato de pensar me é familiar (como um lugar onde eu tenha nascido) e me é espelho. Talvez a única coisa que tenho caminhando neste beco é pensar. O Incômodo não é um estranhamento; é mais o querer fazer lugar numa terra estranha. E aqui demoro em tecer o meu espaço, porque algum imperativo me torna sempre de passagem.

Eu posso afirmar para mim mesmo que morar consiste antes em aceitar habitar num lugar em que primeiro se aninhe o espírito, em silêncio, assentado, ornando depois e aos poucos os espaços domésticos e suas estruturas mais íntimas, com os elementos do próprios ser imantados aos objetos dos nossos afetos, fazendo tudo mais reconhecível, e dizer: “A minha cadeira, o meu abajur, o meu sofá, a minha tela em minha parede, que talvez não seja minha”. Depois tudo bem, se este lugar é de alguma paz, e se se faz lar e casa, num aconchego nos liberta um tanto do “lá fora” tenso de cada dia. Mas eu sempre morei em casa alugada, fingi ter meu próprio quarto, banheiro, escritório, dentro de casa alugada, dentro do acordo de se pagar para morar. Eu nunca tive um lar de habitar de verdade, mas sempre fingi bem ter um lar, porque nunca me cobrei em ter um lar de verdade, nunca me achei à altura de ter casa própria e família reunida. Deve ser por isso que eu suporto bem qualquer parede nova.


Estou em outro luar, neste momento, sigo caminhando; não há outra coisa a fazer senão caminhar. Penso que todo e qualquer lugar onde não se tenha na memória suas vielas, esquinas, praças e marcos pessoais, nos perturba a comodidade que sempre buscamos e ilusoriamente possuímos. Os paralelepípedos se ajuntam, cimentados, com o mesmo efeito que se quer dar lógica à vida (eis uma boa frase...). Ora, não é de todo óbvio — a arte de morar é um exercício de desincomodamento e não uma acomodação. Não é incômodo estar em qualquer lugar. Se onde posso morar é uma escolha, o lugar ideal que abandono incomoda, porque em cada uma das suas ruas me identifico, como se cada paralelepípedo que eu pisava fosse cada célula que me constituía. 

Depois dos últimos acontecimentos, eu tenho estado inspirado, por assim dizer; até sou acordado de madrugada, por mãos em meu ombro, para anotar coisas que sonho, ou que penso dentro de sonhos; ouço vozes, vejo pessoas outras, sou até levado a paragens diferenciadas. Sonhei que estava sentado num banco noturno, na praça São Laurindo, e longe, no gramado, vi uma prostituta levitar e me acenar. Certa vez vi um caboclo, eu mesmo, um indígena misturado, sertanejo, dentro de um velho paletó de linho, idêntico ao de Sean Connery em Indiana Jones. Este sósia discursou com grande retórica para mim, num tupi-guarani elegante, sobre os mistérios do mundo e de além, e ainda me advertiu, em sussurros, acerca de não andar acompanhado por um tempo, ao menos até eu me adaptar à nova vida, ao novo lugar, porque na condição em que me encontro, posso atrair pessoas que logo compreenderão minha tendência existencial à falta de Verossimilhança (quando ele concluiu estas palavras, eu vi minhas mãos lenhadas se transparecerem...) e eu via através delas uma paisagem típica da minha terra natal. As minhas mãos estavam ocas, sem obra, e por entre elas eu via, com estranhamentos, minha terra natal. Tudo bem, são sonhos, talvez não impliquem no meu modo atual de lidar com a vida. 

Há mais ou menos cinco meses eu ainda estava em casa, e assim posso dizer, no velho sofá. Noticiava-se na tevê uma multidão de jovens com os rostos coloridos, bandeiras, cantorias, palavras de ordem e toda uma potência irrefreável que se voltava firme e decidida contra o que se pode chamar de Incômodo. Após tal evento, soube-se que eles realmente destituíram o Incômodo. Eu me emocionava diante de tantos jovens nas ruas, entre os grandes edifícios daquela capital; dentro da tevê eram jovens aparentemente pequenos, eu sei, cabiam na palma da minha mão — um engano para os olhos, diminuídos apenas para caberem na falsa tela da tevê, que não buscava um, porém milhares, de modo a demonstrar o quanto se incomodavam com o Incômodo na presidência; pequenos dentro da tevê, porém na luta — marchando nas ruas, entre os edifícios daquela capital — fosse como se o Incômodo murchasse do seu “gigantismo mentiroso” segundo a potência constante da multidão, quando na verdade o “gigante mentiroso” era menor que uma moeda sem valor. Se eu estivesse ali, no meio deles, certamente seriam maiores do que eu, e o Incômodo se diluiria, como ocorreu e como deve ser, entre o asfalto escuro e os nossos pés, mesmo que estivesse protegido em “seu” capital. Enquanto eu me alegrava com tal imagem, a imagem da queda de um imbecil de “gigantismo mentiroso”, Luiz me apareceu à porta. O acompanhava um anão de cabelo negro e cheio, vestido numa calça social de tecido mole e opaco, de tamanho maior, porém cortada nas pernas; vestia uma camisa de manga longa; gravata escura e um tanto longa tal a certos evangélicos do interior. Eu não prestei atenção à roupa de Luiz. E quando ele falou comigo, não o anão, as minhas mãos estavam quase lilases de não sei o quê.

— Boa noite... Direto ao ponto. Tudo bem? Sabia que eu fui casado com ela sete anos? — disse Luiz — Sete é um número especial, eu vi na Bíblia. Mas o sete não é um número suficiente para quem quer uma vida justa de casado; a gente quer mesmo é setenta e sete. 

— ...

Ele estava com uma expressão entre o nada e o vermelho de rosto e de olhos. Ofegava um pouco, esforçando, talvez, para disfarçar certa adrenalina. E continuou falando.

— Você sabe porque nos separamos. Ela me traiu com seu primeiro namorado, quando ele voltou de Minas Gerais. Eu sei que essas coisas acontecem e eu quis fazer vista grossa, mas uma voz interior não me permitiu. Terminamos, ou seja, eu terminei com ela, que mesmo chorando parecia querer que o fim partisse de mim. Eu chorei... quer dizer... fiz isso escondido... eu não deveria ter dito a você essa besteira... Sabe, eu também a traí no passado. Como não somos católicos, traição se disfarça, se finge não acontecer. É mais fácil perdoar traição sem ser católico... não sei porque estou dizendo isto... Hoje sou evangélico.... Não é que eu não perdoei traição, aliás, eu perdoei minutos depois, mas uma voz interior me fez rever... Na verdade, sobre terminar o relacionamento eu queria apenas fazer uma pressão na tentativa de que ela não me traísse mais, que visse algum valor em mim. Fiz isso apenas para que ela não me deixasse de vez se encontrasse alguém interessante em suas traições, porque no fundo eu não considero traição sexual traição; eu considero traição quando os amantes irresponsavelmente se apaixonam sem se lembrarem do outro. De qualquer jeito, ela aproveitou minha posição, porque parecia querer que o fim partisse de mim. Imediatamente ela ficou com você, e não com o primeiro, me disseram. Isso é feio? Não. E que dias depois de se decidir por morar com você e eu perdê-la outra vez, quem sabe por meses ou anos, mandou me avisar que desta vez não retornaria. Diante disso, gostaria de avisá-lo que não posso perdê-la. Tudo bem?

Eu disse que tudo bem, que ele tinha direito de estar com ela, se ela quisesse... Desconfiei que as regras de “certos machos do interior” consistem da “ordem de chegada” a uma mulher, que o primeiro é sempre o verdadeiro, como se fosse uma espécie de “proprietário”, mas que no fundo acaba-se por destruir a própria casa, porque nada lhe pertence; na verdade não temos nada, talvez tenhamos o momento, eu temia me perder de Laura. Eu disse que conversasse com ela, e eu estaria de acordo com a decisão dela, especialmente se decidisse por mim, o que me parecia evidente na ocasião, mas eu estava enganado.

Luiz olhava para minhas mãos com grande interesse. Laura jamais “seria de alguém”, como se diz no interior. Ela é dona dela mesma e só. Eu e Luiz, cada um em seu tempo feliz, tivemos esse golpe de sorte em conhecê-la conforme nos ela permitia acreditar a conhecíamos, e para mim tal foi um tipo bom de salvação. Depois eu ouvi um estampido. De cima, o anão me olhava, era um pastor. Pôs seus dedos curtos e mornos em minha testa, porque eu estava de costas no chão.


A dez passos de mim, vejo o marco do pioneiro ferroviário Adelmo Falcão, que antecedia o Beco do 69, uma estreita via em forma de S, onde antigamente certos casais copulavam de madrugada e à vista de quem passasse, após o baile. Diferente de mim e de Laura, que somente nos sentíamos bem entre quatro paredes (e ela sobremaneira quando “regia a situação”), me parece que alguns casais nesta cidade têm o poder de abstrair a presença das pessoas, em tais “situações noturnas” desfazem o silêncio da noite. Ninguém mais passa por este beco, onde agora fixo os meus pés, porque se disse, como numa metáfora — “Não há saída aí”. Já a igreja do outro lado da praça, inaugurada esses dias, sofreu uma série de agruras, quando estava erguida somente parte dos seus muros: quem viu segreda sobre o piso repleto de descartes fisiológicos e condoms surrados. Um escândalo. Mas, já passou. Hoje, todos se alegram dentro dela, celebram, exceto eu. É assim que conheço a cidade. Tenho que morar aqui, neste lugar, porque o edital do concurso determinara, e eu preciso trabalhar para sobreviver. Ainda estou sem dinheiro e tenho que estar sentado o dia inteiro, datilografando, até cumprir o horário. A sorte é que tenho visões: vejo borboletas multicores quando o tédio pleno vem me abraçar.

Só um instante, por favor, preciso me recompor... Necessito recontar pequeno evento. Pois bem. Estava caminhando apressadamente por este beco de paredes antigas, paralelas, perspectivadas. Tudo estava em condição de passagem, aparentemente, e eu ali, incomodado pelo o modo como a cidade logo se desvestia desconhecida para mim, e os cheiros, a lama, a umidade, os paralelepípedos arredondados pelos milhares de passos pequenos de homens, bichos e fantasmas que os lapidaram; as bitucas molhadas nos recantos das calçadas. Cheguei por aqui há duas semanas, no meio de uma chuva interminável, que nos deu trégua somente na madrugada passada. Não gostei do lugar, mas como disse, tinha que trabalhar. Cidade estranha, ruas desconhecidas; emprego novo, pessoas novas, amizades por fazer. Um cansaço existencial em tons de ocre. O que é o Incômodo? Esta questão me incomodava, de modo que o beco parecia se alongar. Ora, segui pensando nestas coisas, até avistar, há alguns passos, um vulto que se definia aos poucos. Logo o identifiquei, por causa do seu cassetete girando em sua mão — era um guarda noturno de porte pequeno e barrigudo. Quando me aproximei o vi taciturno, falando sozinho, em sua farda azul quarada; tinha lá seus cinquenta e poucos anos. Tomou um grande susto quando me viu. Eu lhe perguntei “Como chego à rua Honor?” (Porque se eu avistasse uma quitanda de paredes azuis eu saberia a direção da minha casa). Em silêncio olhou em meus olhos; suas mãos estavam trêmulas; o vi beijar pequeno pingente num colar em seu pescoço — era um crucifixo. Insisti, porque me disseram que após este beco eu chegaria facilmente à rua Honor. 

O guarda me disse, num tom solene:

— Não é beco, meu senhor... É viela... Viela não tem saída.

Não levei muito a sério o que ele disse, visto eu ter obtido informações, sobre o beco, de pessoa idosa (e a idade avançada dissipa o agradável desejo de mentir). Me preocupara apenas saber como chegar em casa.

— Por favor, que outro caminho há para a rua Honor, além desses muros? — eu disse.

Desconfiado, olhou de lado rapidamente:

— Que caminho devo te mostrar?...

“Que estranho”, eu pensei. E me contive para não rir.

— Sim, o caminho... — eu disse —, uma vez que eu não podia encontrá-lo.

— Acho que já não sou eu que devo dizer... Não tenho essa autoridade... de dizer um caminho...

Ele deu com os ombros e não mais me encarou. Por tais palavras pensei que estivesse bêbado.

— Moço... — eu disse — Ando por este beco há mais de um mês...

O guarda noturno parecia me evitar. A noite estava fria. Alguns cães latiam, distante. 

— Já basta, senhor... — disse ele e saiu-se para um recanto mais escuro, na curva do muro, igual as pessoas que querem estar a sós consigo mesmas.

Eu segui em silêncio. Pelo canto dos olhos percebi que ainda me olhava. Ali eu estava mais curioso pelo final do beco do que pela minha cama de dormir.


Caminhei o quanto pude até desconfiar daqueles muros paralelos. Beco sem saída, pelo menos para mim. As paredes escuras se fechavam numa curva à minha frente. Trepadeiras enredadas descansavam em seu topo. Num pulo, encaixei as mãos em sua borda, meus sapatos escorregavam no lodo da parede. Consegui escalá-lo à atura do meu peito, mas, aranhas aninhadas me observavam estáticas com seus olhos de vidro. Soltei a borda imediatamente, caí apoiado no chão, senti uma dor aguda nos calcanhares, por causa do frio. Olhei para os lados, eu não sabia o que fazer. Ao meu redor havia uma feição de sonho, minhas mãos dormentes, sujas de lodo do topo do muro. Ofegante ouvi o ruído do ar entrando e saindo das minhas narinas — eu estava vivo; sensação estranha é estar vivo. Quando pensei em retornar de onde estava, na parede lisa do muro abriu-se um vão circular de bordas incandescentes e um túnel se fez; agachado atravessei de imediato para o outro lado, e logo me encontrei na sala de Laura; tive um pressentimento ao notar a janela aberta — que surpresa medonha também me ocorreu sentir, quando dentro de mim mudou-se a raiva e medo do beco sem saída por autocomiseração e paixão, ao vê-la sentada no sofá. Ela ergueu-se de súbito a me xingar: “Nem avisa ao entrar, seu maluco! Você me assustou! Perdi até a página do livro... O que quer a essa hora? Meu ex-marido estava rondando por aqui. Você sabe o quanto ele é insano!...”.

O anão, sim, o anão era um pastor pentecostal. Luiz caminhava de mãos dadas com o anão. Ouvi um estampido; um bando de formigas frias percorreu a minha espinha. Luiz estava à janela, os olhos de brasa recente de quando um aflito e friorento acende uma fogueira, nunca se conformou com a separação, coitado. O anão dava pequenos saltos, de modo que eu via a sua testa ampla e suada emergir várias vezes à borda da janela e depois desaparecer. Às vezes eu tinha raiva de mim, de ter me intrometido num relacionamento. Ouvi um estampido e Laura se desesperou. Foi quando sobreveio a escuridão. Senti gosto de cobre e de sangue na língua, e caí. Eu senti que esse gosto irremediável de morte era menor do que eu (como um objeto perdido debaixo do sofá) e não me incomoda mais a morte, porque ela não desfez o que sou. 

Eu percorria o beco apressadamente.







Wellington Amancio da Silva é sertanejo nascido e criado no interior das Alagoas, Delmiro Gouveia. É formado em Filosofia, é mestre em Ecologia Humana. É membro do editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca, entre outras. Publicou em lugares interessantes.