Ponte, crônica de Sara Klust

 por Sara Klust__



Um dos momentos profissionais mais gratificantes que vivenciei na Europa foi ao prestar serviço como Sprachvermittler*in (mediadora linguística) a um hospital na Alemanha. Experiência da qual me lembro com prazer e gratidão. 


Graduada em Comunicação Social, cheguei a trabalhar ainda no Brasil para algumas renomadas empresas de mídia do país. Porém, nunca o uso da palavra me pareceu tão significativo quanto nos dias em que atuei naquela casa de saúde. 


Alguns anos após me estabelecer na Alemanha, fui contratada para mediar a comunicação entre a equipe médica e uma menina moçambicana, de sete ou oito anos, trazida por uma organização para passar por um delicado procedimento cirúrgico. Grande foi a minha perplexidade ao constatar que a criança estava desacompanhada de um membro de sua família. O hospital não me deu detalhes sobre a vida pessoal da paciente, tampouco sobre a enfermidade que a acometia, apenas me informou a idade e o país de origem. 


Ao chegar à ala onde a menina estava internada, hesitei por um momento: estava psicologicamente forte o bastante para lidar com uma criança doente? Na época, eu ainda não tinha me tornado mãe, minha convivência com crianças era quase inexistente. Indaguei sobre as condições psicológicas da garota, a enfermeira disse perceber somente certa tristeza em seu olhar e que não sabia de mais nada. E nem poderia saber, o diálogo entre a equipe médica e a menina era inviável já que nenhum dos profissionais falava português.


Acompanhada do médico e de uma assistente, eu estava aflita ao adentrar o quarto da pequena paciente. Mas ao contemplá-la deitada em seu leito, completamente sozinha, juntei as forças que eu não tinha, pois ali estava alguém que de fato precisava de minha ajuda. Com cautela, me aproximei e me apresentei: Olá! Me chamo Sara, sou brasileira e estou aqui para conversarmos. Ao compreender o que eu havia falado, a garotinha abriu um largo sorriso e seus olhos se encheram de lágrimas. Também tive vontade de chorar, mas me recompus, pois estava sendo observada. Não pude abraçá-la (norma do hospital), mas nem precisávamos nos tocar para nos sentirmos ligadas. O português, a língua de nossos países e dos nossos pais, foi maior que qualquer contato físico, foi um afago em nossas almas. Assim como ela, eu também estava carente do meu idioma e tinha, tanto quanto tenho até hoje, o português como minha casa.


Estive com a menina moçambicana por mais duas ou três vezes e percebia que ela não era capaz de compreender tudo o que eu dizia, eu também nem sempre alcançava o entendimento de suas palavras, pois ela vinha de uma zona rural onde, além do português, idioma oficial do país, se falava sobretudo uma língua de origem bantu. 


Ela ficava sempre alegre na minha presença e, sorridente, tentava me ensinar alguns termos quando eu não a entendia. 


Precisou ser transferida para uma clínica infantil em outro estado da Alemanha para dar continuidade ao tratamento, e não pude mais acompanhá-la em sua nova etapa de vida. E embora tenham se passado muitos anos desde o nosso breve convívio, a imagem doce daquela menina africana não se apagou da minha memória.


Depois dessa tão significativa experiência, realizei outros trabalhos interessantes como mediadora linguística, sendo um deles auxiliando um grupo de jovens brasileiros na ocasião da Jornada Mundial da Juventude na região de Colônia, em 2005. Atualmente, os contratos se tornaram escassos, com exceção de alguns serviços de tradução escrita que não considero terem a mesma relevância, pois ao ser requisitada como mediadora me sinto como uma ponte interligando pessoas e sentimentos. 





Sara Klust: 
Graduada em Comunicação Social, é tradutora e escritora. Trabalhou nas rádios Cidade e Manchete FM, na assessoria de imprensa do DETRAN e no Jornal do Commercio, antes de se mudar, em 1994, para a Europa. Em 2020 publicou de forma independente Um novo começo em Hamburgo, e, em 2022, A mãe brasileira, disponíveis apenas na Alemanha. É uma das organizadoras da antologia de contos Tinha que ser mulher (@tinhaquesermulher.contos), cujas vendas são revertidas à Associação Fala Mulher, e criadora do coletivo Escritoras Brasileiras no Exterior (@escrevendonoexterior). Embora se aventure na ficção literária, sua grande paixão é escrever crônicas e artigos de opinião. Mora com o filho e o marido na região do Vale do Ruhr, no oeste do país.