Poemas de Ronaldo Cagiano

 por Ronaldo Cagiano__




Foto de Jr Korpa na Unsplash


A VIDA NÃO TEM MÉTRICA



Matéria inabitada,

o futuro não sabe nada de nós,

assim como reclamamos do passado

aquilo que a memória sabotou

em nossos corações esquivos


Pisamos o presente

como se fosse nossa dízima periódica,


esticamos as cordas para medir os desenganos;


e o resultado é nunca absorver o mínimo

de nossa máxima fugacidade.


Na autópsia do instante,

fósseis de um tempo natimorto

povoam as vísceras do pranto.


ÁLBUM DA INFÂNCIA


                         As palavras são para as ocasiões,
                        o luto é quotidiano

                                         Manuel de Freitas



Em que cantos da casa

hiberna a furtiva sensação

do que fomos?


Só os mistérios e fantasmas

não dormem:

continuam a habitar

o álbum de família,

sem limites para o desacontecer.


As recordações

são palimpsestos que desvelo


na pátina dos móveis

no mofo que grafita estranhos seres

nas paredes

nos picumãs que resistem

sobre o fogão à lenha

ou no chiqueiro desabitado

que agora disputa com o vazio

os miasmas de tantos segredos.


Na velha Singer adormecida,

a hesitante linha atravessada na agulha

aguarda a tessitura do amanhã,

mas as mortes chegaram primeiro

farejando-nos com seu rumor de asas.

Todos partiram,

o cansaço visita os quartos

e digere a vida

e desse silêncio resta

inútil espólio:

os varais estão inertes,

a horta desidratada,

o pomar atacado pelo exército de bactérias,

não encontro palavras para descrever a tirania dessa hora

e nenhum alfaiate consegue amoldar a roupa para o meu luto feroz.


Entre o que vejo e sinto,

as teias de aranha,

testemunhas das estações,

denunciam o que já não me pertence.



ASSIMETRIA



A rosa insuspeita

(não importa se nascida da fatalidade

ou do arbítrio)

em sua fuga do caos

agride o desaforo do asfalto

e proclama seu lugar no mundo

em meio à coleção de esquifes


Os sombrios tempos

têm vergonha de sua exaurida verdade

diante da primavera

e suas flores subversivas

que derrotam a escuridão

afrontando a regência do medo 


Entre cismas e cinzas

um pássaro irrompe ao longe

cativado pela inóspita floração

e esteriliza, com seu aparato veloz,

o desequilíbrio desse tempo

& implode

as redomas do caos



ANTAGONISTA



A palavra é a fogueira

que queima todos os horrores

nessa paisagem sem piedade

nem remorsos.


Atravessando desertos

& blasfêmias,

o poema não se submete

ao engano das miragens:


rio que atravessa

o mais fundo exílio,

espera o estuário,

para libertar-se

das margens opressoras,


interroga o insondável

que o espera,


seta antagonista

com sua atroz verdade,


arremesso contra a ferrugem

do tempo.


ESBULHO


Vejo os psicanalistas

como espiões da intimidade

não pagam pedágio

nas alfândegas do meu

    medo


É breve o seu reinado 

mas perduram 

as cicatrizes 

de tão autorizada 

intromissão


Continuam vivos

os meus fantasmas,


não há ataúde

para os meus espantos



CARNIFICINA


Cada homem

é essa carne sem nome

entre uma bala perdida

e a destroçada esperança

na diária oficina

da violência urbana,

açougue que animaliza

o rebanho sem norte,

esperando o corte 

                 na vitrine fashion da morte

na cidade derrotada por metástases


e metáforas de sangue 

num escrutínio

                       sem sorte


CHIAROSCURO


toda a minha noite é um auto de fé

                       Jorge Vicente



Os dias chegavam-me,

mas nem sempre claros.


Só a noite,  

                pontual

e inequívoca,

trazia-me de longe

os seus fantasmas


Em meio aos flashes

de uma lua indecisa

na coreografia

das nuvens


uma oblíqua incerteza

dinamitava

meu espírito insular







Ronaldo Cagiano - Nasceu em Cataguases (MG), viveu em Brasília (onde se formou em Direito) e São Paulo e está radicado em Portugal há sete anos. Estreou com "Palavra engajada" (poesia, 1989) e, dentre outros, publicou "Dicionário de pequenas solidões" (contos, 2007), "O sol nas feridas" (poesia, 2013, finalista do Prémio Portugal Telecom), "Todos os desertos: e depois?" (contos, 2018), "Cartografia do abismo" (poesia, 2020) e "Arsenal de vertigens" (poesia, 2022). Venceu o Prêmio Brasília de Produção Literária 2001 com o livro de contos "Dezembro indigesto" e obteve o 3.º lugar no Prêmio Jabuti de Literatura 2016 com "Eles não moram mais aqui" (contos). Escreve resenhas e artigos para diversos jornais e revistas. Organizou as coletâneas "Poetas mineiros em Brasilia" (2001), "Antologia do conto brasiliense" (2004) e "Todas as gerações - O conto brasiliense contemporâneo" (2006).