Tinha um Verissimo no meio do caminho, crônica de Renata Meffe

 por Renata Meffe__





A crônica é um gênero gostosinho de ler e, se você é do tipo de pessoa, digamos, mais viajandona, uma delícia de escrever. Qualquer estímulo que produza insights e livre associação — também conhecidos como ¨ideia meio nada a ver¨ — rende uma crônica. Os amigos não têm mais paciência para suas eurecas? Eureca! Desenvolva-as num texto levemente divertido, ou divertidamente leve, e encha o saco de muito mais gente. 


Matéria-prima potencial há em todos os lados. Até o mais comezinho dos acontecimentos é cronicável. O próprio termo “comezinho”, dotado de sonoridade tão particular, já renderia uma crônica. Pode nos faltar talento, mas assunto nunca há de faltar. Num texto despretensioso é possível encaixar também aquelas histórias que todos os familiares já escutaram à exaustão, mas que adoramos repetir mesmo assim, não importa que os interlocutores costumeiros revirem os olhos toda vez que eu relembre a tarde chuvosa em que o craque Raí me ajudou a trocar um pneu na avenida 13 de maio. 


Ao colocar as anedotas no papel — difundindo-as para pessoas que quase imediatamente vão esquecer o que acabaram de ler — temos a ilusão de que serão imortalizadas. E podem ser explorados causos próprios ou alheios. Inclusive, graças à licença poética (a licença mais livre de burocracias que existe) está permitido narrar como se fossem próprios os causos alheios. Não responda ainda! Porque, com uma simples cronicazinha em primeira pessoa, tens o poder de transformar-te no protagonista de saborosos episódios que um dia almejastes viver. Isso, sim, é que é jornada do herói.  


Fora que a crônica permite que assuntos aparentemente díspares se conectem e que a gente comece falando, por exemplo, de um craque trocando um pneu na chuva e termine em uma discussão sobre a relevância do leite condensado. A costura temática, profícua em zigue-zagues, saltos e retomadas, segue mais ou menos a (falta de) lógica recorrente em bate-papos na mesa de bar. Este tipo de texto ainda compartilha com o bar o potencial terapêutico, principalmente quando falamos de experiências realmente vividas em primeira pessoa. Ao dissertar sobre nossos traumas, fraquezas, paranoias ou crimes hediondos, esmiuçando o ridiculosinho de nossa conduta, nos conhecemos melhor (algo que, entretanto, a depender de quem somos, talvez não valha assim tanto a pena). 


O humor autodepreciativo, frequentemente utilizado em ensaios pessoais, brota muito naturalmente se você tem a baixa estima alta. Neste caso, o exercício da escrita torna mais fácil perdoar pais e cuidadores, pois nos damos conta que a ausência de carinho e de reforços positivos na infância serve agora como alicerce de um fazer literário. Obrigada, mamãe. Valeu, papai. 


Se você não se leva muito a sério, tende a ser duro consigo, sofre de síndrome do impostor ou é de fato um embuste sem conhecimentos profundos sobre nada, bem-vindo à crônica (ou ao Twitter). Quem sabe, a partir da prática de produzir textos curtos, com o passar do tempo decida que é hora de escavar mais fundo e enveredar rumo a obras de mais fôlego? Ou talvez embrenhe-se em descobertas libertadoras, dando-se conta de que nas profundidades do seu ser reside um grande e belíssimo nada.  


Outra vantagem da crônica é o fato de ela abarcar uma linguagem informal, comportando até trocadilhos mal comportados. É bem verdade que atualmente a sociedade não anda muito tolerante com os jogos de palavras. Torçamos para que seja só uma fase, já que estas coisas são cíclicas como a moda, as lavadoras e a má fase do nosso time. Tal qual a saia balonê, a figura de linguagem, agora em baixa, um dia voltará com tudo. Pode escrever! 


A antipatia atual pelos trocadalhos do carilho quiçá tenha a ver com um ex-presidente-tio-do-pavê que fez uso abusivo de várias outras substâncias além dos joguinhos de palavras: da metáfora futebolística à canção Evidências, da camisa da seleção ao leite condensado (produto de enorme valor calórico e sentimental para nosso povo). Embora tal político, que condensa em sua pessoa predicados negativos, tenha se apropriado de nossos símbolos nacionais, uma hora havemos de reavê-los, em estádios, padarias, karaokês e crônicas de jornais de norte a sul do país.


Comecemos a retomada recuperando as metáforas futebolísticas. Nós brasileiros batemos um bolão na produção de crônicas. Consequentemente, foi sendo formada uma boa escola de leitores. Há gerações que cresceram se lambuzando com os clássicos da coleção Para Gostar de Ler como se fossem brigadeiros de colher. Bons tempos… Jogadores trajavam a camisa canarinho acompanhada de calções apertados, os doces de festinhas ainda estavam livres de Nutella e leite ninho e os livros voltados para o público infanto-juvenil reuniam textos escritos por autores como Rubem Braga, Drummond e Fernando Sabino. Se, por um lado, a tradição nos familiariza com a linguagem da crônica, facilitando a produção, quem se arrisca no gênero aqui no Brasil sente o peso da camisa. Deve ser mais ou menos o que o goleiro Edinho, filho de Pelé, deva ter vivenciado ao dar seus primeiros chutes (tanto que achou melhor jogar com as mãos). Tocar a bola em campos onde atuou um Paulo Mendes Campos é intimidador. 


A esta altura do campeonato, entre os craques habilidosos por excelência ainda na ativa, aquele que desequilibra minhas aspirações à cronista, e me faz sentir aquela fisgada em minha mão de pau de escriba, é o Luís Fernando Verissimo. Com visão de jogo, texto enxuto e humor, Verissimo é superlativo como seu nome: afiadíssimo, perspicazíssimo, brilhantíssimo, originalíssimo. Em outras palavras, um escritor que jamais se valeria de tantos adjetivos no superlativo para descrever os predicados de alguém. Sendo tão intensivamente espetacular, inflacionou o mercado. Nivelou por cima. E a cultura do cara? Manja tudo de jazz, de cinema, de literatura, de comida, de percuciência. Não sabe o que é percuciência? Eu também não, mas certeza que ele domina o tema. Entrada covarde nos aspirantes. Merecia um cartão! Um cartão com felicitações e agradecidas declarações de uma leitora apaixonada por seu talento.


Já a geração dos mais jovens, sub-50, conta aí com um garoto novo, Antônio Prata, que também dá show de bola. Sabe ler o jogo e cria lances que emocionam e divertem, sempre marcando em cima do espírito do tempo. Vem com cada sacada genial que bem poderia se arriscar também no vôlei. E no time feminino? A qualidade técnica e tática de atletas das palavras como a joga nas onze Tati Bernardi e a bárbara Vanessa Bárbara, para citar apenas algumas das titulares absolutas, faz qualquer iniciante amarelar.


Mesmo que não seja escalada nem para o banco de reservas, seguirei atuando nas quatro linhas destes descomplicados textos, que dificilmente deixarão de ser meu gênero preferido. Sem demandar complexas construções de personagens, enredos mirabolantes ou arcos narrativos intrincados, a crônica é uma comodidade para autores mais acomodados. No quesito menor esforço, vale lembrar ainda que a croniqueta funciona, quando metida a engraçadinha, como uma apresentação de stand up comedy. Porém, o cronista, ao contrário do comediante, não precisa ficar acordado até tarde apresentando seu show, pode trabalhar mesmo tendo ansiedade social e, não menos importante, desfruta do prazer de exercer seu ofício comodamente sentado. 






Renata Meffe - Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo
 ensaios que jamais estreiam.