Trechos do livro Gastura, de Fernando Machado

 por Fernando Machado__


 

               
TRECHO 1 (páginas 49 e 50 do capítulo Bill Clinton e Monica
Lewinsky, sobre política americana)


A mesa do Salão Oval era um móvel pesado, não muito comprido, mas bem largo, sem pés aparentes, com as laterais e a parte frontal totalmente apoiadas no carpete, executado com madeira de lei entalhada no estilo renascentista ou vitoriano. Totalmente fechada, possuía na saia frontal uma portinhola, que não era notada quando fechada por completo; na famosa foto, o primogênito do presidente engatinhava, passando pela portinhola entreaberta para fora e deixando para trás seu “esconderijo secreto”.


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Sou tomado por um inesperado e intenso estado de devaneio onírico e passo a associar o episódio a outro hipotético e emocionante engatinhar por baixo da mesma mesa presidencial. Minha mente viajou para a década de 1990, na gestão do presidente Bill Clinton, embora o engatinhar não tenha sido praticado por sua inocente filhinha, à época com doze anos, mas por uma atraente estagiária da Casa Branca de 22 anos, chamada Monica Lewinsky.


O engatinhar ao “covil secreto”, certamente por obra de olhos tristes e traiçoeiros que pululavam no entorno do presidente romântico, foi evidenciado e ele não teve como negar o devaneio sexual, uma vez que o vestido da estagiária com a mancha do sêmen democrata acabou sendo entregue aos sedentos investigadores. Mesmo com as provas, Bill Clinton negou, numa manifestação televisiva ao lado de sua esposa, que tivesse praticado sexo com a estagiária, mas admitiu que se envolveu numa “relação física inapropriada”. Maldita chupada!


Apesar da ameaça de impeachment e do desgaste que ele teve com o episódio, foi-lhe dado o perdão pelos americanos e completou seu segundo mandato presidencial sem atropelos; sua esposa, elevada à posição de “chifruda” mais poderosa do mundo, foi punida pelos eleitores e perdeu a eleição em que pretendia substituir o marido sedutor.


TRECHO 2 (páginas 168 e 169, do capítulo “Assassinato de Ângela Diniz”)


No fim desse ano de 1976, o assassinato de Ângela Diniz e o consequente julgamento do assassino confesso, Doca Street, escancarou o comportamento vergonhoso de uma sociedade que ainda não tinha consciência de que a “legítima defesa da honra” poderia transformar o agressor em vítima e a agredida em canalha.


Doca Street e Ângela Diniz conheceram-se em agosto, durante um jantar realizado na residência da socialite paulistana Adelita Scarpa, mulher de Doca. Apaixonado,resolveu abandonar sua esposa e filho para viver sua alucinada paixão com Ângela. Assim, o casal passou a morar no apartamento dela e a passar fins de semana na casa que ela possuía em Búzios, no Rio de Janeiro. Sem trabalho e sem dinheiro, Doca aceitou, sem constrangimento, ser mantido pela namorada, que bancava as onerosas e luxuosas despesas do casal.


Em razão de seu exagerado ciúme, coagia Ângela a deixar de frequentar os lugares habituais e a distanciar-se de seus antigos amigos. Passou a controlar todos os seus passos, o que começou a incomodá-la, já que estava acostumada a ser uma mulher independente e avessa a qualquer tipo de submissão. O romance, intenso e vigoroso, regado a cocaína e champanhe, começou a esfriar, e o lugar da paixão foi sendo ocupado pelas controvérsias.


No fatídico dia, o casal estava em casa de Ângela, em Búzios, para passar o fim de semana e as festas de fim de ano. Na praia, Ângela estava exagerando nos coquetéis e ficando cada vez mais desinibida e, quando uma atraente alemã, que vendia artesanatos na praia, aproximou-se, Doca percebeu que Ângela estava tentando seduzi-la. Quando voltaram para casa, ela estava embriagada e ele raivoso e humilhado.Retomaram, de forma muito intensa, a discussão sobre o caso da alemã na praia, e Ângela, descontrolada, anunciou que não queria mais saber dele, que o relacionamento tinha chegado ao fim. Doca resolveu retirar-se da casa, provavelmente para aguardar que os ânimos esfriassem.


Contudo, quando já estava a alguns quilômetros de distância, resolveu voltar para tentar uma derradeira reconciliação e encontrou-a descontraidamente sentada perto da piscina. Ajoelhado, pediu perdão, e Ângela olhou em seu rosto e disse-lhe, de forma ameaçadora: “Se você quiser continuar comigo, vai ter que suportar dividir-me com outros homens e mulheres, seu corno”.


Logo que ela se levantou, ele disse: “Se você não vai ser minha, não será de mais ninguém”, em seguida, desferiu quatro tiros contra ela, deixando a arma no local do crime, ao lado de seu corpo, evadindo-se. Essa foi apenas uma das versões do assassinato apresentada por Doca, à época do primeiro julgamento do caso. À primeira vista, frágil e fantasiosa.


TRECHO 3 (página 224 a 226, do capítulo “Eclosão da ‘Peste Gay’”)


No dia 20 de maio de 1983, o cientista Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, da França, isolou o vírus causador dessa doença controversa, que já era conhecida, equivocadamente, como “peste gay”. A descoberta do vírus, que passou a ser chamado de HIV, acendeu a tocha da esperança a diversos indivíduos, homossexuais masculinos, diagnosticados com uma “nova forma de pneumonia” e com lesões decorrentes do sarcoma de Kaposi, que até então só afetava indivíduos com o sistema imunológico muito debilitado. O vírus, na realidade retrovírus, caracteriza-se por possuir um período de incubação prolongado, provocar a contaminação das células sanguíneas e do sistema nervoso, além de debilitar o sistema imunológico. Os indivíduos infectados ficam vulneráveis, possibilitando o aparecimento de outras infecções e doenças oportunistas, que se manifestam com o sistema imune enfraquecido.


No decorrer do tempo, foram sendo confirmados os casos da doença em usuários de drogas injetáveis e em alguns heterossexuais e, como todas as formas de contágio ainda eram desconhecidas, a descoberta da doença levava o indivíduo infectado ao completo isolamento hospitalar preventivo. 


O pânico começou a ser controlado quando foram distinguidas quatro vias claras de contaminação: a relação sexual, a transmissão hereditária de mãe para os filhos, a transfusão de sangue e o uso de agulhas de seringa contaminadas; no entanto, sem sintomas evidentes que pudessem diagnosticar a doença, o medo e a desconfiança provocaram fuga em massa de lugares públicos e até de escolas para evitar o contágio.


A aparição de várias personalidades conhecidas pelo público, em geral, com a aparência cadavérica, ajudou a tornar a doença mais conhecida e a impulsionar campanhas de conscientização, afinal, ainda pairavam muitas dúvidas sobre os métodos de prevenção. Uma das personalidades mais evidenciadas, na época, foi o ator norte-americano Rock Hudson, que a grande maioria dos admiradores, inclusive eu, nem sabia que era homossexual. Galã de filmes românticos, atuando com as mais consagradas atrizes da época, teve a sua homossexualidade acobertada pela indústria cinematográfica durante todo o período fértil de sua carreira.


O livro Rock Hudson — história de sua vida, escrito por Sara Davidson, em parceria com o próprio ator, escancarou a vida de uma personalidade promíscua, cuja homossexualidade compulsiva, com dezenas de parceiros, levou-o a ser a primeira vítima pública a morrer da doença, menos de dois anos após ser contaminado.





Engenheiro civil aposentado, o escritor Fernando Machado se formou pela Universidade Mackenzie em 1968. Começou a se dedicar à literatura pouco antes da pandemia, já com 75 anos de idade. Quando começou uma terapia de regressão, percebeu-se dono de uma memória viva, rica em detalhes dos fatos, de seus contextos e das transformações que ocorreram ao longo do tempo na sociedade a qual estava inserido. Fernando também foi fundador de um Espaço Multicultural que ganhou vida após sua aposentadoria. Pouco depois, se mudou para Florianópolis –  quando começou a se dedicar à escrita. É autor de "Gastura", "Phenix" e atualmente se empenha na escrita de outro romance ficcional, que envolve temas polêmicos como gênero, raça e preconceito.