Uma conversa com a escritora e dramaturga Martina Sohn Fischer

 por Divulgação__




                                                                              
Atravessamentos poéticos entre pulsões de vida e morte: uma conversa com a escritora e dramaturga Martina Sohn Fischer


Estreia poética da escritora e dramaturga Martina Sohn Fischer (@nomedemar), “O que estive fazendo quando nada fiz” é uma obra que propõe um diálogo entre as pulsões de vida e morte a partir de um reconhecimento sensível da própria voz e dos desejos, luzes e sombras — que fazem parte da composição de um eu-lírico demasiado humano. Publicada pela editora Urutau (108 páginas), a obra conta com a orelha assinada por Dione Carlos, roteirista, atriz, curadora e também dramaturga. 


A morte, o amor, a depressão, a mania e as marcas que ficam são os temas centrais de “O que estive fazendo quando nada fiz”. Focado no tempo e em todos esses atravessamentos possíveis, a obra reúne poemas que começaram a ser escritos em 2017, quando a autora vivia momentos difíceis. Diagnosticada recentemente com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), a autora, que já fazia análise por mais de 10 anos, coloca na escrita sua subjetividade, promovendo um encontro de sensibilidades — fator ressaltado na orelha como um supertrunfo da escritora, e tem como origem a intencionalidade e também o método criativo utilizado: a associação livre e a escrita dos sonhos. Também nesse sentido, Dione Carlos afirma que há na poesia de Martina uma voz inflamada de uma mulher guiada por paixões que ela sequer tenta controlar. E isso, segundo a atriz e dramaturga, corporifica emoções e permite que elas modifiquem sua forma, além de transformar a do leitor que, a partir do que ela constrói, abraça a própria sombra e dá a ela algumas funções.


Natural de União da Vitória (PR), que faz divisa com Porto União (SC), a escritora, dramaturga e poeta viveu grande parte da sua vida entre as duas cidades. Formada em psicologia, reside em Curitiba, capital paranaense, desde 2011. Teve três peças encenadas: “Aqui”, por Club Noir (SP), “Casa de Inverno”, por Artrupe (AM) e “Coração de Baleia”, por Ateliê 23 (AM). A peça “Aqui”, publicada pela editora 7Letras, obteve uma crítica na Folha de S. Paulo por Luiz Fernando Ramos. Martina também já escreveu contos para o site Caos Descrito, revista Jandique e Mathilda Revista Literária.


Leia a entrevista com Martina Sohn Fischer na íntegra:


1 - O que motivou a publicação do livro? Como foi o processo de escrita?


São poemas que venho escrevendo desde 2017, então cada um tem um tempo e juntos fazem um tempo próprio da obra. Escrevia eles quando nada mais podia fazer frente a situações difíceis, os poemas foram minha forma de criar uma existência possível, mesmo desejando o próprio desaparecimento. É sobre pulsão de morte, mas pulsão de vida também. É sobre depressão mas é também sobre um olhar lírico que invade o dia para que seja possível vivê-lo.


2 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?


Tempo, morte, vida, amor, depressão, mania, marcas, erotismo, suicídio. Mas acho que o mais central mesmo é como o tempo atravessa tudo isso. Um corpo que atravessa o tempo. Hora querendo morrer e hora vivendo, porque a vida seduz. A morte também, mas disso não escapamos. A sedução da vida, do que é vivo, é poético e precisamos de tempo, de pausas, de olhos em todos os órgãos pra poder sentir e perceber.


3 - Por que escolher esses temas?


Só escrevo sobre o que me atravessa, a escrita é meu modo de sobreviver. Escrevo para morrer um pouco mais devagar. Escrevo para poder aproveitar as sensibilidades do corpo, para poder habitar a loucura sem que ela me consuma. O que me empolga muito é quando a escrita circula, se movimenta a partir de um outro que lê. É muito delicado, pois é partilhar da minha loucura, de algo que na maioria das vezes me faz mal, me dissocia, me perturba, mas tenho relatos de leitores que se identificam e que se sentem acompanhados nessa loucura, podendo juntos (leitor e obra) encontrar uma saída possível, um retorno e um fundar a vida de cada dia, com e apesar da loucura. 


Quando digo loucura, isso pode ter várias formas, a mais recente é que fui diagnosticada com Transtorno Afetivo Bipolar. Fiz análise por 11 anos, até eu vivenciar uma crise muito pesada de dissociação e agora preciso tomar remédios. Tenho lutas diárias com os medicamentos, mas é uma das coisas que me ajuda muito, poder entender e separar as coisas, me encontrar com uma outra versão de mim, encarar o que é sintoma e o que sou eu, mesmo que a cada dia isso se transforme. Tenho um histórico familiar intenso de transtornos mentais e eu não percebi que também sofria de um. Levava a minha análise como garantia de nunca sucumbir, me equivoquei e no mundo não existe garantia para nada mesmo. Entende porque escrevo? É para tentar me livrar de muita coisa, para elaborar, para fazer luto, para me conectar com o outro. Em vários momentos me inspiro com alguém, com alguma palavra dita, um gesto e escrevo incansavelmente sobre essa paisagem. Mostro para a pessoa, fico atenta às reações, quase como quando a gente grita num lado de um penhasco para ouvir um eco, uma outra voz que nos retorna: “Também há vida e morte aqui, sigamos”. Muitas vezes sou invasiva, faço do outro algo meu ou vice-versa, é difícil perceber os limites do que escrevo. 


4 - Como você definiria o seu estilo?


Poética e por livre associação.


5 - Quais são as suas principais influências literárias? 


Clarice Lispector, Mia Couto, Assionara Souza, Virginia Woolf, Sylvia Plath, William Faulkner, Sarah Kane, Hilda Hilst. Clarice e Mia revolucionaram minha forma de ler e escrever, Com Clarice eu consigo fazer da minha própria cabeça uma casa inteira que se transforma constantemente em paisagens íntimas espetaculares, em alguns momentos é maravilhosamente insuportável e eu preciso levantar a cabeça do livro pra lembrar onde está a minha cabeça, meus braços e pernas. E com o Mia, as paisagens saem e percorrem a terra de dentro pra fora, fazendo e se desfazendo a cada passo, pode surgir uma árvore, um rio inteiro, uma cova e um número infinito de bichos e gente. Eu considero as músicas que eu ouvia desde muito nova como influências literárias também, sempre prestei muita atenção nas letras de Rita Lee, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Maria Bethânia, Belchior. Eu ficava e fico impressionada em como cada palavra e frase toma o corpo, sempre me fazendo olhar pra um canto em mim que é mais de fora do que de dentro, e isso significa um alívio, poder ser insignificante, poder olhar o universo e esquecer do próprio corpo, se espalhar como um grão de areia numa praia toda sentindo a repetição de eras das ondas.


6 - Que livros influenciaram diretamente a obra?


Todos que eu já li, mesmo os que eu não gostei. Fica tudo na cabeça e na hora de escrever tudo isso me influencia de algum modo e crio com tudo isso. Parece exagero, mas acho que o próprio processo de escrever é que vai deixando algumas coisas irem embora e outras se transformarem, de influências, inspirações e o que não inspira também.


7 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?


Desde os 12 anos. Mas fui escrever seriamente quando tinha 16, 17 anos. Tenho a lembrança nítida da primeira palavra que li inteira e sozinha: era o nome do carro (Santana) do meu recém falecido “Opa” (avô, em alemão). Depois nunca mais parei de ler e pensar que todos aqueles símbolos traduziam o mundo que eu habitava. Foi como receber uma chave muito secreta e maravilhosa. Mas antes ainda de ler palavras escritas, eu também passei por um momento de descoberta quando comecei a usar óculos. Fiquei chocada que o que eu via eram imagens distorcidas e nebulosas. Comecei a usar óculos um pouco antes de ler e julgo que eu comecei a escrever com os olhos. Lembro de narrar pequenos e grandes momentos e cenas e paisagens que eu presenciava, coisas que me emocionaram e até hoje escrevo sobre algumas dessas paisagens que narrei pra mim mesma, antes mesmo de ler palavras. Eram coisas como: o sabiá pisando com suas patinhas finas na grama recém-molhada pela chuva, catando minhocas, gravetos e fazendo ninho em alguma árvore secreta. O sol saindo tocando minha pele fria pela sombra, o farfalhar das árvores acima de mim, o cheiro úmido de terra e grama, o cheiro do pássaro, o rastejar dos caracóis. Depois, a água da mangueira molhando a calçada quente, eu deitando na poça quente, aquecendo meu corpo, braços e pernas abertas, o sol cegante. A música da paisagem toda permanece até hoje desenhada em toda minha pele, ouvidos, olhos, nariz e boca. É um corpo vivo, é erótico porque cada elemento desses me atingia de forma erógena, fazendo borda do meu corpo, fazendo marca. Esse é um dos exemplos de quando eu escrevia com os olhos. 


8 - Como é o seu processo de escrita?


Trabalho muito com associação livre, escrevo muito partindo de sonhos também e depois retorno aos textos revisando e excluindo muitas coisas. Gosto de escrever partindo de fotos, ilustrações, cenas que colam na cabeça, cheiros e toques. Acho que minha escrita é bastante erótica sem necessariamente usar do sexo somente, mas também de um corpo erógeno que vive e que morre constantemente. Ando obcecada por uma frase de “A maçã no escuro”, de Clarice, quando me deparei com essa frase disse: vou escrever um livro inteiro para essa frase! Meu processo é bem megalomaníaco em muitos momentos — para mim, escrever um livro tem esse lugar: é muita coisa, é coisa demais e ele se manda. Então, em muitos momentos, é um certo alívio desse egocentrismo, é um livro que se escreve e é preciso respeitar isso. 


9 - Você tem algum ritual de preparação? Tem alguma meta diária de escrita? 


Normalmente escrevo todos os dias, mas às vezes passo por períodos de reclusão criativa e escrevo pouco ou quase nada. Minha meta é sempre escrever mesmo que seja só coisa ruim. Não sou muito disciplinada e escrevo em qualquer lugar. Algumas vezes escrevo para exorcizar momentos, paixões, tesão, tristezas, euforias, idealizações, não sei. Escrever faz função quase que biológica em mim, claro que depois trabalho em cima pra fazer laço com outros, não agradar, mas acho que o que eu sempre penso é que quando eu leio autores, eu acabo ficando louca pra escrever mais e mais. É quase uma comida, uma água, que incita o corpo e a cabeça a trabalhar, então acho que eu não fico excessivamente pensando no que eu quero causar, mas sim nesse laço em forma de pacto obscuro que talvez faça o outro dizer e sentir que quer fazer arte também.


10 - Quais são os seus projetos atuais? O que vem por aí?


Outro livro de poemas, tenho o mapa de um romance e gosto também de trabalhar com contos e peças. É sempre difícil saber o que vai sair, no romance eu tento trabalhar de forma mais consistente, mas acho que em alguns momentos prefiro ser mais livre e dinâmica mesmo. O que mais me vem são poemas, gosto de chamar de pequenos textos também. Mas já comecei um romance que terminou em peça, já comecei um poema que terminou em conto, e assim vai. 


Sendo mais objetiva: quero que o romance ande mais e fique mais consistente. O livro de poemas vou escrevendo, estou com um projeto que chama “Janelas” em que escrevo a partir de uma foto, um desenho. No momento tenho lançado esse projeto no Instagram, tem sido legal. No primeiro “Janelas” eu escrevi a partir de uma foto minha, depois escrevi poemas partindo de duas fotos de uma grande amiga que se chama Fernanda Motta e o último, até então, parti de uma foto de Celina Ishikawa e esse foi legal também que a Celina escreveu a partir de uma foto minha! Então dá para se aventurar bastante nesse projeto. Ele chama Janelas porque eu ganhei de uma amiga-irmã uma ilustração de quando éramos crianças e subimos no telhado do chalé em que eu morava, e a visão da ilustração é de dentro do quarto dos meus pais. Fiquei muito emocionada quando ganhei porque interpretei a gente ali, olhando outros terrenos, outras casas, outras árvores e o céu estrelado como um respiro da novela familiar, uma saída (pela janela) possível para viver a própria vida.