Meu filho Tabebuia, crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__



Ultimamente temos vivido, no país inteiro, com temperaturas dignas de juízo final. Parece mesmo que se aproxima com chuvas e destruição no Sul; seca, tempestade de areia e queimadas na Amazônia e no Centro-Oeste; pestes, guerras, aquele argentino de peruca medonha; terror do Hamas, genocídio de Israel, sem falar no que veio antes e que nos ameaça como zumbis tentando sair das tumbas: Trump, Bozo etc etc. 

Tamanho miserê provocou uma saudade danada do meu rebento, o Tabebuia. Deve ser esperança. Ele não é meu filho de sangue ou de seiva. Eu o adotei. Talvez, mais apropriado dizer que ele me adotou, apareceu na minha vida da forma mais linda e inusitada. 

Tabebuia é um tabebuia mesmo, um bem dotado ipê amarelo. Seus parentes de seiva são famosos por virarem pisos e decks que duram toda vida. Quer dizer, duram toda a vida dos outros, não a deles. Também são famosos pelas extraordinárias formas eróticas que os Exus esculpidos pelo mestre Chico Tabibuia (com “i” mesmo) adquirem. Sinal de vida.

Se eu fosse um ipê, preferiria mil vezes que aproveitassem meus restos mortais para dar forma a um portentoso Exu hermafrodita, como os do Chico Tabibuia. Melhor que virar deck de piscina de cantor sertanejo.

Mas o meu Tabebuia não corre risco disso. Na melhor das hipóteses, quem sabe – se ele se dispuser, no futuro, a ser um doador – vira um falo ou uma vagina de Exu, criado a partir de algum de seus galhos, como se costuma fazer com o sangue ou o rim para boas causas? Pena que mestre Chico não esteja mais entre nós e não sei se deixou discípulos. 

A depender de mim, garanto à minha criança que ela fique até morrer no pedaço de terra que lhe dei, deixando muitos descendentes. Mesmo que eu não esteja mais por aqui.

Tabebuia e eu somos muito ligados. Apesar da pouca idade, aprendeu a viver sozinho. De vez em quando dou um suplemento orgânico para ele. É preocupação. Sabe-se lá se está se alimentando direito? Também abraço muito quando o encontro.  

Ele apareceu na minha vida numa tarde normal de trabalho, na minha mesa, que ficava no sétimo andar de um apartamento. Tarde quente e modorrenta de um final de setembro, hora apropriada para o sono atacar, resolvi fazer um café. Na volta, o travo diante do computador tentando achar solução para um parágrafo. Busco inspiração no teto, nas fotografias das paredes, no céu visto da janela... 

Nada. 

Baixei os olhos e no canto da mesa vejo um negocinho transparente, parecido com um pedacinho de papel de seda. Puxei a minúscula cápsula, era uma semente. 

Como viera parar no sétimo andar?

Suspeitei que fosse do ipê amarelo espremido ao muro do prédio na calçada, lá embaixo. Raquítico, todo ano dava flor. Estávamos no fim da florada, vagens com sementes já abertas. Só podia ter vindo com o acaso do vento.

Cuidadoso com a belezinha, larguei o texto e corri preparar um vaso. Penetrei a terra, deixei lá no fundo a semente. Agora viveria comigo no quarto, perto da janela para pegar sol. Pesquisei sobre água e adubo orgânico apropriado, atento a qualquer dilatação no ventre da terra.  

Numa manhã o brotinho apareceu, miúdo, silencioso. Abracei o vaso, as folhinhas enroladas, o caulezinho ainda ligado à semente. Folhinhas tenras vieram ao poucos, verde forte, com vontade de viver. Cada dia uma novidade. Às vezes era birrento, bastava errar na quantidade de água ou adubo e ele estrilava, folhas caíam, amarelavam. Foi tomando corpo, alcançou seu primeiro metro e eu, orgulhoso, exibia meu rebento para as visitas, “Olha como tá grande! Dá um trabalho... Só gosta de Mozart, nunca vi igual. Não duvido que, quando crescer, não ceda um galhinho para virar arco de violino”. 

Infância e adolescência transcorriam. Pelas folhinhas meio tristes, percebia que ele não suportava mais o apartamento. Era hora de ir viver sozinho. 

Sonhei planos para ele, falava de uma serra bonita, onde viviam outros ipês e árvores de boa família, da Mata Atlântica. Ele parecia gostar da ideia, cada vez mais imponente naquele metro e meio. 

O dia chegou, ia viver por conta própria na serra. Emocionado, fui com ele no carro. Era visível sua ansiedade, tudo era novidade, nunca tinha saído de casa. Ao mesmo tempo mantinha-se impávido e orgulhoso, saía da casa paterna para morar sozinho. Claro que eu não ia deixar que ficasse tão longe das minhas vistas. Levei-o para o sítio da família, ia morar a uns 20 metros da casa. Ainda que eu só fosse vê-lo uma vez por semana, preferia assim. Sou um pouco à moda antiga.

As fotos do meu Tabebuia me fizeram fazer contas. Está um rapagão de quase dois metros de altura, magrelo, maior que eu. Não fico sondando, mas acho que ainda é virgem. Até agora não deu uma florzinha. Talvez eu é que seja ansioso. O bom é que está totalmente adaptado e entrosado, já dá uma bela sombrinha. Seu melhor amigo é uma embaúba, mas também está sempre com um pau-brasil e uma paineira, mais novos que ele. Sem falar na velha candeia que o protege, para minha tranquilidade. A gente cria filho é para o mundo.



Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).